Sunday, August 27, 2006

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Notas

[1] Seguem dois pronunciamentos recentes de fontes acima de qualquer suspeita de conspiração ou ação antiimperialista ou antiimperial. Ambos contêm informações bastante expressivas no atacado, dispensando a enumeração de infinitos casos e situações de desigualdade e injustiça entre países, classes e pessoas. O primeiro é de abril de 2004: Economistas do Banco Mundial admitem que a maioria dos países em desenvolvimento não conseguirá atingir a meta, estipulada pela própria instituição, de reduzir a pobreza pela metade até 2015. Motivo: os países ricos não cumprem a promessa feita há dois anos de aumentar a ajuda financeira aos pobres. Isso é agravado pela manutenção de barreiras comerciais e dos subsídios pelos ricos. Mesmo quando dão dinheiro aos países pobres, os desenvolvidos os punem com regimes comerciais que bloqueiam o acesso aos seus mercados. O presidente do banco, James Wolfenson, define como desvio absurdo os gastos dos países ricos de US$ 350 bilhões anuais com subsídios agrícolas e US$ 900 bilhões com defesa. Os EUA, o país mais rico do mundo, é o que proporcionalmente menos dá aos pobres (O Globo, 23.4.2004). Um mês depois: O diretor-executivo do Programa Alimentar das Nações Unidas, James Morris, pergunta porque 800 milhões de pessoas passam fome no mundo se montanhas de excedentes alimentares são ignoradas e se apenas uma semana dos US$ 300 bilhões (sic) gastos pelos países desenvolvidos em subsídios agrícolas poderia suprir toda demanda de ajuda alimentar a estas pessoas por um ano inteiro. Ele lembra que o problema não é a produção global de alimentos. “O mundo tem produzido o suficiente para cada homem, mulher e criança desde os anos 60” (O Globo, 17.5.2004).
[2] Embora ecoe nostálgica e debilitada, a palavra ‘revolução’ parece recuperar hoje parte de sua reputação de perigo e volta a impor certo respeito, depois de muito tempo apossada pela ideologia e pelo marketing, despojada de seu sentido estrito, de destruição e substituição de um regime político. Revoluções propriamente ditas, como define Abbagnano no Dicionário de Filosofia (ABBAGNANO, 2000: 858-859), foram a inglesa, a americana, a francesa e a russa. Ainda se fala – e muito – em revolução no sentido largo, quando se quer atribuir importância a uma mudança, seja na política, na economia, na arte, na ciência ou no futebol. Mas há também quem queira evitar a palavra ou mesmo bani-la, como acaba de ocorrer na comemoração dos 30 anos da ‘Revolução dos Cravos’ em Portugal. O slogan do governo para celebrar a data, ‘Abril é Evolução’ provocou protestos da oposição socialista. Em todo o país, nos dias que antecederam o 25 de Abril, mãos anônimas acrescentaram o ‘R’ à palavra ‘Evolução’ nas peças da propaganda oficial. Mesmo não se tratando de uma revolução no sentido estrito, a elipse do ‘R’ não ocorreu, seguramente, por rigor técnico nem por respeito ao sentido político da palavra. É possível que mentes perspicazes e intuitivas, de dentro do próprio sistema dominante, já tenham percebido algum revigoramento no sentido da palavra.
[3] A noção de trabalho imaterial tem contribuições de diversas fontes, mas se desenvolveu fundamentalmente no caldo de cultura do ‘operaísmo’ italiano, movimento teórico-político de orientação neomarxista. Como assinala Giuseppe Cocco na introdução a Trabalho imaterial (LAZZARATO & NEGRI, 2001: 16-17), além de contribuições teóricas inovadoras, os ‘operaistas’ tiveram envolvimento social e político nas décadas de 60 e 70. Um de seus desdobramentos, que teve a participação de Negri, deu origem à experiência político-organizacional conhecida como ‘autonomia operária’. O conceito e ‘autonomia’ corresponde a uma forma política autodeterminada e não-representativa; não responde a partidos políticos nem admite delegação a representantes.
[4] Como explica Simone Sobral Sampaio em O trabalho de Foucault: Poder, ou melhor, Resistência (SAMPAIO, 2003: 4), o conceito de resistência é entendido aqui no sentido foucaultiano. Remete menos ao sentido lexical de reação, defesa e oposição, aproximando-se mais de ação, ofensiva e revolução. A resistência é anterior ao poder e o constitui. É, portanto, constituinte das relações de força em todos os níveis da vida humana. Onde há poder, há resistência na forma de lutas que atacam o seu funcionamento e seus agenciamentos. E trata-se de luta presente e não de promessa ou profecia.
[5] Alguns autores, como Rubén Dri, usam o termo ‘marxiano’ quando se referem ao pensamento de Marx e ‘marxismo’ quando se trata de uma interpretação ou desenvolvimento (DRI, 2002).
[6] Faz parte da natureza do capitalismo industrial modificar permanentemente a base técnica de produção, as funções dos trabalhadores e as relações sociais de trabalho por meio de máquinas, graças principalmente ao progresso técnico. Isso decorre fundamentalmente das próprias lutas dos trabalhadores por maior remuneração, melhores condições de vida e pelo controle dos meios de produção. Mas a transformação incessante dos meios de produção se dá à custa dos próprios trabalhadores, que perdem empregos e garantias de sobrevivência. O trabalhador está sempre ameaçado de perder seus meios de existência e de se tornar ele próprio supérfluo, compondo um ‘exército industrial de reserva’, que é recriado incessantemente, como Marx observou. A economia liberal ensina e os pensadores liberais proclamam que este processo de substituição do trabalho humano por máquinas é neutralizado, ao longo do tempo, pela ‘lei da compensação’, isto é, criam-se sempre novos empregos à medida que outros desaparecem. Raymond Aron, diz que Marx nunca acreditou que ‘desemprego tecnológico’, o desemprego decorrente do progresso técnico. “Esse tipo de bobagem volta a cada 20 anos e desaparece com a mesma rapidez” (ARON, 2003: 315). O próprio Marx, porém, demonstra, no O Capital, que a mão-de-obra dispensada não é efetivamente contratada em outras empresas e que as demissões não afetam somente o trabalhador desempregado, mas o conjunto de todos os trabalhadores pela queda do valor do salário.
[7] O problema, para Marx, não é a máquina, ela mesma, mas a máquina nas mãos do capitalista: “La máquina es inocente de las miserias que provoca. (...) Em consecuencia, como la máquina, triunfo del hombre sobre las fuerzas naturales, se convierte en manos de los capitalistas en el instrumento de la esclavización del hombre a esas fuerzas (...)” (MARX, 2004).
[8] No trabalho Tecnologia e Emprego, uma Relação Conflituosa, o professor do Instituto de Economia da Unicamp, Jorge Mattoso, procura demonstrar que a inovação tecnológica, “embora possa modificar a qualidade e a quantidade do emprego, não determina a priori seu resultado, sobretudo quando observada a economia nacional” (MATTOSO, 2000). Ele contesta que o atual processo de inovação resulte em uma menor geração de emprego por unidade de crescimento econômico e que isso leve ao ‘crescimento sem emprego’. Assinala que, ao contrário, vem ocorrendo, nos países ricos, a preservação e mesmo o aumento da ‘elasticidade emprego’. Suas conclusões, porém, parecem referidas exclusivamente ao mundo desenvolvido. Se comprovado, isso seria natural tendo em vista algumas especificidades dos países desenvolvidos, como a expansão dos serviços sociais e pessoais, que demandam mais trabalho e estão diretamente associados ao aumento da riqueza.
[9] Cabe aqui situar o significado da releitura dos Grundrisse para a compreensão do capitalismo contemporâneo. Euclides André Mance, do Instituto de Filosofia da Libertação (IFiL), explica que os Grundrisse são rascunhos de Marx que darão origem a O Capital. Algumas das intuições destes rascunhos acabaram sendo sacrificadas por não caberem supostamente na análise do capitalismo da época com rigor científico perseguido por Marx. Duas das dificuldades não suficientemente equacionadas e, portanto, abandonadas em O Capital são: 1) a definição de trabalho produtivo e improdutivo e 2) o caráter da ciência como fator produtivo, sua relação com o valor, a produção de mais-valia e o tempo livre. (MANCE, 1997).
[10] Chama-se ‘escola de Frankfurt’ o grupo de filósofos que, a partir dos Anos 30, propuseram-se a elaborar uma teoria crítica do conhecimento a partir do pensamento de Marx e do questionamento do sistema de valores individualistas. Entre os seus expoentes, destacam-se Theodor Adorno, Walter Benjamin, Max Horkheimer, Jürgen Habermas e o próprio Marcuse.
[11] Mance explica que Marx se refere, sem mencionar o autor – que permaneceu anônimo – por quatro vezes ao trabalho The source and remedy of the national difficulties, deduced from principles of political economy in a letter to Lord John Russel. (MANCE, 1997).
[12] A França reconhece há bastante tempo a especificidade do trabalho dos ‘intermitentes do espetáculo’ (atores, técnicos, bailarinos etc), remunerando tais profissionais nos períodos de recesso. Como registra reportagem da revista Global (no. 2, maio, junho e julho de 2004, p. 34), o governo francês começa a colocar em questão este estatuto no âmbito das reformas sócio-econômicas em curso. Isso suscitou fortes movimentos de resistência por parte dos intermitentes do espetáculo e colocou outra questão em discussão: a intermitência é uma característica apenas do trabalho no espetáculo? Hoje a intermitência é crescente e compreende as mais diversas formas de trabalho em todas as atividades econômicas (trabalhadores precários, informais, autônomos, prestadores de serviços, sem remuneração nem jornadas fixas). Existe uma ‘coordenação dos intermitentes franceses’ que preconiza não uma reforma no código do trabalho e sim uma reforma fiscal, que deve taxar as novas formas de riqueza, para romper a lógica neoliberal da falta de fontes financeiras para os gastos sociais porque as finanças públicas estão em crise com a queda das receitas e o aumento das despesas. “Nous voyons la richesse là où elle circule (les flux financiers, interbancaires, de communicacion, autoroutiers ...) Il faut réfléchir à d’autres formes d’impôt sur les nouvelles formes de richesse. Le système de prélèvements obligatoires qui devra financer la mobilité reste a inventer.” (Libération, 8/4/2004).
[13] O tema é tratado no capítulo 4, Salir de la sociedad salarial in Misérias del presente, riqueza de lo posible.
[14] A título de exemplo, vale citar a reportagem publicada no jornal O Globo (3/4/2004, p. 19), sobre uma pesquisa da Universidade de Quebec mostrando que a onda global de fusões na indústria farmacêutica provocou aumento nos preços dos remédios, lucros recordes para as empresas e menos inovações nos tratamentos em geral e nos medicamentos para doenças ainda sem cura. A divulgação da pesquisa parece ser mais um round no conflito de interesses das farmacêuticas, que aumentam os preços dos medicamentos, e dos sistemas de seguro-saúde, que querem pagar menos. A reportagem permite interpretar, nas entrelinhas, que se trata de uma operação de relações públicas, com a clássica articulação entre empresas, academia e mídia para ‘provar’ enunciados. Pesquisas encomendadas, patrocinadas ou apropriadas por grupos de interesse são amplamente divulgadas na mídia por estes mesmos interessados. No caso, a fonte principal da reportagem, Phillipe Pignarre, da Universidade de Quebec, diz que nenhum seguro saúde pode pagar tratamentos tão caros e que, nesse ritmo, os sistemas de seguro saúde de vários países vão explodir.
[15] Em artigo publicado no jornal O Globo de 6.6.2004, Merval Pereira cita o sociólogo Manuel Castells, da Universidade Southern California: “a sociedade global tem agora os meios tecnológicos para existir independentemente das instituições políticas e do sistema de comunicação de massa”. Ele vê “significados políticos” no potencial da internet como meio autônomo de organização, independente de um comando central e controle. Identifica os movimentos que fazem uso político das novas tecnologias como um “processo de transformação estrutural” em curso, com múltiplas dimensões: tecnológica, econômica, cultural e institucional. Mas adverte (ou defende) que a sociedade civil e seus movimentos não prescindem nem do Estado nem do sistema midiático. Castells recorre a Antonio Gramsci para dizer que a sociedade civil é o espaço intermediário entre o Estado e o cidadão e, portanto, não seria contra o Estado, mas um canal para a sua transformação. Como se sabe, este é um tema controverso, como demonstrou Pierre Clastres em A sociedade contra o estado (CLASTRES, 2003). Deleuze e Guattari partem de Clastres para concluir a demolição da idéia evolucionista ‘da sociedade primitiva ao estado’, mostrando a coexistência desde sempre de ‘sociedades com Estado’ e ‘sociedades contra o Estado’ (DELEUZE & GUATTARI, 1997: 22 e 23).
[16] “O marketing está aprendendo uma lição com as novas comunidades que estão surgindo em toda a nossa cultura. Os pesquisadores serão obrigados a voltar sua atenção para os efeitos dos grupos sociais em suas atitudes e decisões. (...) Outra mudança em propaganda e marketing será o foco que deixará de ser a comunicação que chega a um consumidor por vez e passará a ser a comunicação entre as redes sociais e o boca-a-boca”. (Stark, 2004: 25).

Conclusão

A concomitância no mundo contemporâneo da capacidade sem precedentes da sociedade de produzir riqueza e do agravamento do ‘apartheid’ social em escala planetária propõe hoje a cada indivíduo uma condição ambivalente, de sentido ao mesmo tempo trágico e venturoso. Quem não está faminto, amedrontado pela ignorância ou humilhado pela miséria é beneficiário, mas também é vítima do sistema; está preso a seus valores e, ao mesmo tempo, é portador do modo de vida que se anuncia e é vetor de transformação. A multidão crescente de seres supérfluos e descartáveis é mantida em extrema pobreza e despojada de todo valor político, mas também é produtiva e constituinte, integrante do conjunto maior da multidão global. Pobres, explorados, subjugados, excluídos produzem o tempo todo, inventam novas realidades que antecipam o novo paradigma produtivo de flexibilidade temporal e mobilidade espacial, afetividade e cooperação. Integram a multiplicidade de singularidades do proletariado mundial, em que a potência de resistência ao Império é elemento constitutivo.
O agravamento da calamidade social do presente ocorre, portanto, no âmbito do processo de mudanças profundas na sociedade, que se materializa através das transformações no trabalho e na organização da produção e prenuncia uma nova subjetividade e novas formas de vida, bem como a organização social, a política e a economia, que possam lhes corresponder. Podemos estar vivendo o limiar de uma mudança de paradigma tão radical como foi a passagem do mundo medieval para a modernidade, com a emergência de novos valores e categorias de pensamento, outro léxico e a configuração de outra geografia. A grande diferença agora deverá ser a velocidade do processo.
Tudo está por ser feito, portanto. Assim é a vida humana. É absoluta tolice festejar o futuro, principalmente porque o devir não tem forma nem quando. Cabe, no máximo, comemorar as lutas do dia a dia, os acontecimentos enquanto acontecem. Mas é preciso, sobretudo, combater o niilismo oportunista, a condescendência existencial e a picaretagem intelectual da falta de esperança e de ação política.
Até agora, a sociedade do conhecimento segue regida pela lógica do mercado e os sinais de surgimento de uma sociedade pós-industrial ou pós-capitalista não bastam para aplacar as carências e angústias do presente. Muito ao contrário. Marilena Chauí, em palestra realizada em 2003 [CHAUÍ, 2003] observa que embora o conhecimento e a informação tenham se tornado forças produtivas, a hegemonia do capital financeiro em relação ao capital produtivo faz com que a informação prevaleça sobre o conhecimento. Como o capital financeiro opera com riquezas virtuais, cuja existência se reduz à informação, o poder econômico se baseia na posse de informações, que se tornam estratégicas e secretas, bloqueando poderes democráticos que também se baseiam no direito à informação. Assim, no presente, a chamada sociedade do conhecimento serve ao mercado, sobretudo o financeiro, e não propicia a ação política da sociedade civil.
Chauí destaca que a sociedade do conhecimento é inseparável da velocidade. Há uma acentuada redução do tempo entre a aquisição de conhecimento e sua aplicação tecnológica, a ponto da aplicação determinar o conteúdo da própria investigação científica. Ela cita que o conhecimento levou 1750 anos para se duplicar pela primeira vez, no início da era cristã; depois passou a duplicar-se a cada 150 anos, depois a cada 50 anos até contarmos agora este movimento em meses e dias. Mas questiona se a quantidade de descobertas está conseguindo transformar a estrutura das ciências, se a mudança epistemológica que ocorre hoje na química equivale, por exemplo, à passagem da alquimia para a química no século 17.
Na mesma palestra, ela remete à análise de David Harvey sobre a condição pós-moderna. Harvey associa os efeitos da acumulação flexível de capital – fragmentação da produção, hegemonia do capital financeiro, rotatividade extrema da mão-de-obra, obsolescência vertiginosa das qualificações do trabalho, exclusão social e política – a uma transformação sem precedentes na experiência do espaço e do tempo. Ele chama esta transformação de ‘compressão espaço-temporal’, isto é, a simultaneidade de dois fenômenos contrários engendrados pela globalização: de um lado, a fragmentação e dispersão espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos da tecnologia da informação, a compressão do espaço – tudo se passa aqui, sem distâncias, diferenças nem fronteiras – e a compressão do tempo – tudo se passa agora, sem passado e sem futuro. Mas o próprio autor adverte que “essas mudanças, quando confrontadas com as regras básicas de acumulação capitalista, mostram-se mais como transformações da aparência superficial do que como sinais do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova”. [HARVEY, 2003] Se, como sempre, tudo está por fazer, se tudo permanece incerto, a questão que prevalece também é a mesma de sempre: o que fazer? Que práxis pode se adequar ao momento em que o trabalho imaterial e o novo modo de produção se instalam mas não predominam, em que o novo sujeito está presente mas não é hegemônico? O que fazer enquanto a multidão não faz o evento? A resposta talvez esteja na construção também de um novo conceito de revolução. Não se trata mais de pensar a revolução como missão a ser cumprida e sim como devir revolucionário, constante, permanente, infindável. Na entrevista a Negri para a Futur Anterieur, em 1990, Deleuze dá o exemplo dos acontecimentos de Maio de 1968:
“Maio de 68 foi a manifestação, a irrupção de um devir em estado puro. Hoje está na moda denunciar os horrores da revolução. Nem mesmo é novidade, todo o romantismo inglês está repleto de uma reflexão sobre Cromwell muito análoga àquela que hoje se faz sobre Stálin. Dizem que as revoluções têm um mau futuro. Mas não param de misturar duas coisas, o futuro das revoluções na história e o devir revolucionário das pessoas. Nem sequer são as mesmas pessoas nos dois casos. A única oportunidade dos homens está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável”. [DELEUZE, 1992: 211]
Deleuze assinala que os processos de subjetivação só valem no momento em que têm uma espontaneidade rebelde. Não se trata de retorno ao ‘sujeito’, a uma instância dotada de deveres, poder e saber. Mais que de subjetivação, se poderia falar de novos tipos de acontecimentos, que não se explicam pelos estados de coisas que os suscitam ou nos quais tornam a cair. É o instante em que se elevam que se precisa agarrar. Deleuze conclui afirmando que acreditar no mundo é o que mais nos falta; é provocar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou de volume reduzidos. “É no nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo”. [DELEUZE, 1992: 218]
O que fazer de ‘o que fazer?, hoje – ou seja: o corpo do General Intellect, é um dos capítulos finais das Cinco lições. Nele, Negri discute o tema da ‘tomada do poder’ no marxismo revolucionário, à luz do legado teórico-político de Lênin, cuja obra teria sido alcançada só pela metade: conquistou o poder, mas não extinguiu o Estado. Negri pergunta o que seria a conquista do poder e a extinção do Estado num período histórico que vê (ou prevê) a hegemonia do capital no ‘general intellect’. Ou, dito de outra forma, como será possível construir o corpo subversivo do intelecto geral, fazendo da organização comunista a alavanca, o ponto de geração de novas corporalidades revolucionárias, a base da produção de subjetividade?
“Não acredito que possamos identificar a escolha do caminho possível: penso que somente um movimento de luta poderá decidi-lo. E, todavia, é certo que na perspectiva de amadurecimento do ‘General Intellect’ precisamos antecipar a experimentação. Porque somente dessa forma, opondo à história natural do capital aquelas contradições insolúveis que Marx inventou, a genealogia do ‘General Intellect’ será constituída como força subversiva. Definir o corpo do ‘General Intellect’ é, de fato, a mesma coisa que afirmar a potência dos sujeitos que o habitam, a violência da crise que sacode a sua ambigüidade, o choque de teleologias que o atravessam: e decidir de que lado estamos neste caos. (...) É uma constituição que nasce da militância de homens construídos no trabalho imaterial e cooperativo, decididos a viver como associação subversiva”. [NEGRI, 2003: 216] Mas, para Negri, não se trata somente de reconhecer uma nova realidade, mas de redescobrir a urgência da organização. O corpo está sempre localizado e é sempre no tempo. A produção de subjetividade necessita de determinações espaciais e temporais para ser eficaz. Para a Rússia (lugar e tempo), haverá para Lênin uma determinação absoluta: aqui, agora ou nunca mais. Quais são o espaço e o tempo possíveis da revolução para o proletariado imaterial hoje?
“Surgem muitas dificuldades ao reconhecer a dimensão espacial de um novo projeto leninista. Nós vivemos no Império e sabemos que qualquer iniciativa revolucionária que se movimente em espaços limitados (mesmo que fossem Estados-nação de grandes dimensões) não poderia ter continuidade. É claro, pois, que o único Palácio de Inverno hoje reconhecível é a White House! Difícil de ser atacada, não resta dúvida... Além disso, quanto mais o poder imperial toma força, tanto mais sua representação política torna-se complexa e integrada a nível mundial. (...) O que interessa em ‘Lênin além de Lênin’ é identificar praticamente aquele ponto da corrente imperial onde seja possível forçar a realidade. Ora, esse não é um ‘ponto fraco’ – não será mais assim: será, pelo contrário, aquele ponto onde são mais fortes a resistência, a insurreição, a hegemonia do ‘General Intellect’, em suma, o poder constituinte do novo proletariado”. [NEGRI, 2003: 217]
Negri chama de ‘kairòs’ (do grego ‘oportunidade’) a possibilidade de emergência do corpo do ‘general intellect’. Trata-se do instante de criação, da potência intempestiva de um evento, da flecha que o ‘general intellect’ desfere para reconhecer-se como corpo. Mas ele próprio pergunta o que isso significa. Diz que é preciso militância e experimentação a respeito deste ponto. Parece claro que o dispositivo leninista de intervenção num ponto fraco e num tempo crítico já não é eficaz. Somente onde o ‘partido da força de trabalho imaterial’ tem mais energia que as forças da exploração capitalista é possível um desenho de libertação. Negri retoma, aqui, a idéia de ‘democracia absoluta’, em Espinosa, aquela forma de governo que a multidão exerce sobre si mesma. Ela nada tem em comum com a teoria das formas de governo. ‘Democracia absoluta’ é um termo adequado à invenção de uma nova forma de liberdade, à produção de um povo em devir.
No aqui e agora, Negri preconiza que resistir é alargar as redes do saber e do agir ‘comuns’, contra a privatização do comando e da riqueza; significa romper as linhas da exploração e da exclusão.
É nesse plano, então, que cabe situar a demanda pelo ‘salário social’ e a discussão a respeito do seu financiamento e, portanto, da sua materialização. Trata-se de propor, debater, lutar e conquistar, mesmo que a demanda pareça impossível como deve ter ocorrido a quase todos que ouviram o senador Suplicy defender o seu projeto original há 14 anos e os que dizem hoje que não há recursos para cumprir a lei da renda mínima garantida, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República. E mesmo que a proposta seja ridicularizada, como o projeto do deputado Rebelo de taxar os lucros da venda de produtos geneticamente modificados. Uma frase atribuída ao Che parece bem adequada a esta situação: “Seja realista; exija o impossível!”.
Como vimos no capítulo ‘Pagar a conta’, é muito esclarecedor a respeito da viabilidade e do financiamento do salário social universal e incondicional o ensaio de Carlo Vercellone, Mutations du concept de travail productif et nouvelles normes de répartition. Fica demonstrado que a proposta é absolutamente legítima e ética não apenas sob a ótica social, mas também pela lógica econômica. Fica evidente, igualmente, a falácia da tese da limitação de recursos para a sua viabilização.
Pode-se perceber, assim, que da mesma forma que a causa da fome de milhões de pessoas não é a falta de alimentos (produzidos em abundância há muitas décadas) nem corresponde a qualquer lógica moral, a inexistência do salário social não decorre da escassez de dinheiro nem tampouco de qualquer imperativo ético. As duas questões são entrelaçadas e estão no plano das escolhas ao alcance da sociedade. O que é preciso é enfrentá-las e materializar as soluções.
Como estamos em um campo da especulação muito dinâmico, também cabe confrontar alguns acontecimentos do presente mais atual com as reflexões de Harvey e da professora Chauí sobre o estado da sociedade do conhecimento e o fato de que está submetida à lógica do mercado, bem como às dúvidas sobre os sinais de surgimento de uma nova ordem social, de produção e de vida. É possível que estes acontecimentos recentes prenunciem um novo ambiente para o debate e a tomada de decisões na sociedade global e ajudem a realizar o que pode parecer impossível: a socialização da riqueza correspondente à socialização do trabalho e da produção.
Desde Seattle, os fenômenos de resistência se multiplicam e não param de oferecer novidades e surpreender. A ‘nova sociedade civil’ se constitui globalmente e depressa, dispondo cada vez mais de meios tecnológicos para existir independentemente das instituições políticas e da mídia. Internet e telefones celulares permitem manifestações e acontecimentos locais e globais, de forma instantânea, autônoma e independente de comando. O exemplo mais recente de impacto mundial, ao qual já nos referimos, foi o uso maciço de mensagens via email e celulares nos últimos dias da campanha eleitoral na Espanha, após os atentados terroristas, em março deste ano. A mobilização instantânea e espontânea (aqui caberia também a palavra ‘intempestiva’) de milhões de pessoas inverteu (virou o jogo) em poucos dias a tendência do eleitorado, levando à derrota do primeiro-ministro José Maria Aznar, aliado da política militar-intervencionista de Bush. As conseqüências deste episódio repercutiram no enfraquecimento das forças de apoio mundial à intervenção americana no Iraque.
Estas manifestações parecem configurar uma resposta da multidão – com as armas da tecnologia – ao regime de controle contínuo, aberto e de comunicação instantânea, que passa a substituir no mundo atual – com as mesmas armas da tecnologia – as técnicas de confinamento da sociedade disciplinar.
É claro que o sistema capitalista – ou Império – se mobiliza para evitar ou absorver qualquer movimento de ocupação do ‘vazio da representação’ e de construção de espaços públicos livres para organização, diálogo e tomada de decisões. O sistema dominante atua para ‘estatizar’ as ongs e constitucionalizar a ‘nova sociedade civil’, enquanto constrói o campo teórico da limitação e neutralização dos movimentos intempestivos de base tecnológica. [15] Busca, com o mesmo propósito, absorver no mercado a potência das ‘fhash mobs’ (multidões repentinas) ou ‘smart mobs’ (multidões inteligentes), formadas por pessoas que se comunicam por telefone e pela internet e se encontram subitamente em determinado lugar para realizar um ato aparentemente inócuo. [16] Este fenômeno e as manifestações políticas da ‘nova sociedade civil’ têm em comum o fato de ocorrerem em grupos com interesses semelhantes, capazes de se comunicar e agir sem comando, graças às novas tecnologias de comunicação.
O capitalismo e o mercado nunca desistirão de dobrar a resistência e de tentar conciliar os contrários, apelando para a ideologia ou para as armas. Não resta à multidão outro destino, a não ser constituir e reconstituir sempre. Apostar no devir revolucionário é conquistar espaços ao poder e saber escapar de suas armadilhas. Revolução é uma fuga sem fim.

4 – Centralidade da tecnociência

O desenvolvimento técnico-científico é um dos principais elos de ligação entre as transformações que ocorrem na sociedade atual e a futura forma de vida que tais mudanças anunciam. Trata-se da emergência de um novo modo de produção e uma nova subjetividade e, necessariamente, de uma outra economia, outra organização política, outros valores, outras categorias de pensamento e outro léxico, distintos dos que herdamos da modernidade e que estamos acostumados a praticar.
A tecnociência, portanto, é central desde já, ou melhor desde o momento em que o capital começa a depender menos do trabalho para se reproduzir e mais das inovações científicas aplicadas à produção. Trata-se de um fenômeno mais amplo que o ‘desemprego tecnológico’ e o ‘exército de reserva’ característicos do capitalismo industrial. Hoje não resta dúvida de que o capitalismo se expande em decorrência da riqueza gerada pelas novas tecnologias, em especial a informática e a biogenética, enquanto o trabalho imediato é deslocado do papel predominante no sistema produtivo. O próprio capital é levado a buscar outras oportunidades de lucro e formas de reprodução. O sistema produz cada vez mais riqueza como menos trabalho e, também, com menos capital.
A questão que se coloca hoje para a tecnociência é a mesma da problemática do próprio capitalismo. Embora tenha o poder imenso de gerar riqueza, o capitalismo contemporâneo produz cada vez mais miséria e destruição, mantendo em extrema pobreza a maior parte da humanidade e oferecendo aos demais, aos seus supostos ‘beneficiários’, o avanço progressivo do medo, da angústia e do niilismo. Sob a lógica atual, esfumaçam-se igualmente as esperanças de que o progresso técnico-científco abriria caminho para o fim da pobreza e o acesso de todos ao bem-estar e aos benefícios de uma sociedade mais próspera, livre e justa. Ao contrário, o que se vê é o aumento em vez da redução das distâncias entre as pessoas e os países. Assim, a tecnociência está no centro tanto do sistema presente, que radicaliza o ‘apartheid’ social, como é o alicerce da forma de vida do futuro, de comunhão da riqueza e do saber, prenunciada pelas transformações que ela mesma promove.
Não se trata, portanto, de julgar, culpar ou condenar a tecnociência quando se aponta o seu efeito de gerar desemprego (por ‘libertar’ o homem do trabalho), o seu impacto ameaçador sobre a natureza e a vida humana ou a manipulação de seu desenvolvimento por interesses divorciados da sociedade. Igualmente, não se pretende punir o desenvolvimento técnico-científico ao se sugerir que parte da riqueza decorrente das inovações financie o projeto do salário social incondicional e universal. Como vimos na apresentação desta monografia, parece óbvio que o dinheiro para atender esta demanda terá de vir da própria fonte da riqueza e da reprodução do capital. Além do mais, a proposta do salário social não representa uma dificuldade para a sociedade ou para o sistema produtivo, mas sim uma saída para o impasse econômico atual, que se traduz na busca que o capital empreende pelo lucro sem a mediação do trabalho produtivo (que é cada vez menos necessário), provocando ainda mais desemprego e gerando menos recursos para que os estados possam atender as demandas sociais.
Assumimos, portanto, sem qualquer juízo de valor, que a ciência e a técnica ocupam posição central na vida contemporânea. Têm efeito determinante sobre a constituição do sistema produtivo, a organização social e a formação da subjetividade. Porém, apesar do seu impacto extraordinário e crescente, as decisões relacionadas ao conhecimento científico e ao desenvolvimento tecnológico são divorciadas dos interesses da sociedade e dos indivíduos.
Concomitantemente à sua colossal potência de benefícios, a tecnociência é materializada de forma a produzir ameaças à vida e gera efeitos perversos para imensos e crescentes contingentes de pobres e excluídos em todo o mundo e mesmo para os supostos beneficiários do sistema. O questionamento a este modelo de produção e difusão técnico-científica é sufocado por acusações de obscurantismo, resistência ao progresso e exotismo existencial. O sistema de dominação desqualifica a crítica como oposição ou proposta de desistência da civilização técnica.
A reflexão na sociedade sobre este tema é em geral tímida, ficando restrita a raros círculos intelectuais. Não há debate democrático à altura da relevância do tema. As decisões sobre o que pesquisar ficam na esfera de uma nebulosa entidade chamada ‘comunidade científica’, supostamente legitimadas pela ‘autoridade do saber’ e pela ‘busca do progresso’. As escolhas do que vai ser desenvolvido e aplicado dependem de interesses de empresas e governos. [14]
Um dos discursos ideológicos mais entranhados no senso comum e, portanto, mais poderosos, é o da sacralização da ciência e da técnica. É trivialidade legitimar interesses, mentiras e leviandades com rótulos de ‘novidade científica’, ‘prova científica’ ou ‘estudo científico’. Não importa se pouco tempo depois os benefícios não aparecem e os danos ocorrem; ondas contínuas de descobertas são despejadas na sociedade, espalhadas pela mídia e aceitas pelas pessoas.
A afirmação de que a ciência é assunto que compete privativamente aos cientistas também é lugar comum. ‘Cada macaco no seu galho’, insistem os marqueteiros e lobistas de plantão e até mesmo bem intencionados militantes de causas dignas de respeito. Há pouco tempo, um assíduo articulista da imprensa carioca, dedicado à defesa de aplicações da engenharia genética e à regularização das culturas transgênicas no Brasil, rebatia com o seguinte raciocínio a posição contrária manifestada por um religioso:
“A sociedade poderia fazer um pacto: cientistas cuidam do saber, políticos do governo, artistas da cultura, religiosos do espírito”. [GRAZIANO, 2003]
Ora, há 40 anos, Herbert Marcuse destacava que diante do totalitarismo da sociedade capitalista – ainda nos estertores de sua versão moderna – a noção de ‘neutralidade’ da tecnologia não podia mais se sustentar.
“A tecnologia como tal não pode ser isolada do uso ao qual está fadada; a sociedade tecnológica é um sistema de dominação que opera já no conceito e construção das técnicas”. [MARCUSE, 1968]
De Marcuse para cá, esta tendência se confirmou e se intensificou. O professor Laymert Garcia dos Santos é um dos pensadores brasileiros mais atentos à questão das conseqüências ético-políticas da tecnociência. No prefácio do livro Politizar as novas tecnologias [SANTOS, 2003], ele manifesta a impressão de que os anos 90 marcam o momento em que a tecnosfera, ou segunda natureza, passou a preponderar em relação à natureza, anulando de vez a concepção puramente utilitária que se tinha da tecnologia. A origem destas transformações remonta ao pós-guerra e aos anos 60-70, mas é nos 90 que a disseminação dos computadores e da Internet e os avanços da biotecnologia alcançam reconfigurar as percepções e práticas dos indivíduos e da sociedade. A potência das máquinas passa a se exercer sobre toda a vida e nossa existência é cada vez mais modulada pela aceleração tecnológica.
“O acesso à tecnologia tornou-se tão vital que hoje a inclusão social e a própria sobrevivência passam obrigatoriamente pela capacidade que indivíduos e populações têm de se inserir no mundo das máquinas e de acompanhar as ondas de evolução tecnológica”. [SANTOS, 2003: 10]
Garcia dos Santos constata que ninguém, nem mesmo o mais isolado e refratário dos povos indígenas, consegue hoje ficar fora da globalização, a qual seria inconcebível sem as novas tecnologias. Até os excluídos e os que não querem participar têm de jogar o jogo. Mesmo assim, prevalece a idéia ingênua de que a tecnologia ‘nos serve’. Por mais importante que seja este aspecto utilitário, ele não é tudo. E o que extrapola a função de uso da tecnologia fica invisível. O perigo está exatamente aí. Como se defender ou fugir de uma ameaça que não se vê?
Percorrendo uma trilha de reflexão que atravessa os rastros do pensamento marcuseano, o professor Garcia dos Santos destaca que a centralidade da tecnologia tem sido pouco problematizada e que a crítica não foi capaz de convencer a sociedade da necessidade de discussão da questão tecnológica em toda a sua complexidade. Ele propõe a politização radical do debate sobre a tecnologia e suas relações com a ciência e o capital, trazendo para toda a sociedade uma questão que o establishment quer restrita aos Estados e às corporações globais. As opções tecnológicas devem ser encaradas pela sociedade como de interesse público e cabe à política tratar a tecnociência como seu objeto de crítica por excelência.
Em um dos capítulos de Politizar as novas tecnologias, Garcia dos Santos transcreve entrevista de Vandana Shiva, cientista indiana e combatente ambientalista. O texto, intitulado A nova colonização genética, foi publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, em 7/4/1996. Ela ensina que toda sociedade tem tecnologia como meio de atender necessidades e aspirações humanas. O problema é que na sociedade contemporânea a tecnologia foi alçada à condição de fim e objetivo da aspiração humana. Em vez de ser avaliada pelos valores humanos, a tecnologia é que passou a ditar a condição humana.
“Já não se perguntava mais quais seriam os impactos sociais, culturais e ecológicos da introdução em larga escala de uma tecnologia específica, se ela era desejável ou imprópria. A tecnologia não precisava mais ser adaptada à sociedade e à natureza; passou-se a esperar que a sociedade e a natureza se adaptassem à tecnologia; e para essa adaptação impositiva e violenta, nenhum custo social e ecológico foi considerado excessivo”. [SHIVA, 2003: 75]
Outro capítulo do livro é a transcrição da palestra Consumindo o futuro, realizada em janeiro de 2000 e publicada também na Folha de S. Paulo, em 27/2/200. Nela, Garcia dos Santos avança na avaliação dos resultados da revolução tecnocientífica dos últimos anos. Os benefícios não chegam à maior parte da humanidade. A lógica da sobrevivência se aguçou. O darwinismo social tornou-se mais perverso com a introdução da competência tecnológica. Passou-se a atribuir uma superioridade incontestável a essa ‘nova classe’, conferindo-lhe ares de ‘outra humanidade’. Isso abriria espaço para o ‘melhoramento genético’ das elites, talvez sob aplausos de entusiastas da biotecnologia.
Ele indaga o que ocorre além do mundo dos excluídos. O que se passa com a sociedade dos incluídos? A aliança entre tecnociência e economia e o profetizado fim da política tiram dos incluídos a condição de cidadãos e os reduzem a consumidores. A identidade social passa a se afirmar na esfera do consumo, enquanto crescem a incerteza quanto ao futuro e a ameaça de exclusão. Mas o professor Garcia dos Santos não se alinha com os pessimistas. Por mais intensa que seja a devoração do tempo, o capitalismo não dá conta do futuro. Não há porque se deprimir porque o jogo não acabou e nunca acaba.
Cabe aqui, a título de ilustração da configuração prática dessa discussão sobre a centralidade da tecnociência, mais uma incursão nos acontecimentos do Brasil do presente. Encontra-se hoje em tramitação no Congresso Nacional o projeto da Lei de Biossegurança, que regulamenta a pesquisa e o uso de organismos geneticamente modificados no país. O primeiro relator do projeto, deputado Aldo Rebelo (atual ministro da Coordenação Política), propôs a criação de um imposto sobre a comercialização destes produtos para a constituição de um fundo para financiar o aprimoramento tecnológico de atividades e culturas tipicamente utilizadas por agricultores familiares e produtos da cesta básica, desenvolvidos por universidades e entidades públicas. O objetivo é fazer chegar de forma mais direta aos pequenos agricultores os benefícios materiais da nova tecnologia.
A proposta de Rebelo fora ridicularizada pelo economista Paulo Rabelo de Castro, um dos expoentes nacionais do neoliberalismo, em artigo publicado no jornal O Globo em 8/12/2003:
“Imagina se a moda pega! Teríamos, de uma hora para outra, impostos gravando tudo que parecesse com progresso tecnológico, de certo em benefício dos ‘pequenos’. Exemplo: a Embraer desenvolve uma aeronave com características especialmente competitivas para pousos e decolagens. Imposto nela, criando-se um fundo para compra de passagem aérea para paulistanos sem praia que queiram visitar as do Nordeste. Outra idéia interessante: alguém na Fiocruz desenvolve um OGM que produz repelência ao Aedes aegypti, o temível mosquito da dengue. Se patentear e vender, será taxado para ajudar na compra de mosquiteiros para uso em regiões infestadas”. [CASTRO, 2003]
Parece evidente que a virulência desta manifestação contra a proposta de taxação dos transgênicos transcende o âmbito restrito ao projeto em questão e remete a uma discussão mais ampla. Trata-se da lógica econômica que não admite qualquer interferência nas fontes de lucro do sistema e nem mesmo referências à destinação e repartição destes ganhos. Mas, por que não falar seriamente do financiamento dos grandes programas sociais, do combate à fome e do salário social, considerando a tributação direta dos lucros gerados pelas novas tecnologias? Este tema deve ser encarado de frente em razão da absoluta centralidade da tecnociência no sistema produtivo e em toda a vida contemporânea e futura.
Se os ‘economistas burgueses’ e os capitalistas protegem o tema da distribuição dos ganhos da tecnociência, a própria filosofia mantém certa reverência quando se trata de refletir sobre a totalizante presença da técnica na vida humana. No contexto da reflexão sobre a relação entre técnica e sociedade, Bruno Latour e Laurent Bibard [LATOUR & BIBARD] chamam atenção para a tradicional reserva da filosofia em relação à questão, apesar do impacto e do interesse da humanidade por cada revolução ou novidade tecnológica. A própria filosofia crítica oscila entre tecnofilia ou tecnofobia. Ora a técnica é neutra, um mero instrumento, ora ela engendra um monstro, o sistema técnico autônomo, sem nenhum fim humano. Um afirma que basta trocar o homem que domina a técnica para que ela sirva doce e comportadamente à sociedade. Mal conduzida a técnica é perversa, bem conduzida ela é neutra. Outro se assusta com a autonomia da técnica. O mito da técnica que enlouquece e domina o homem é o prolongamento da neutralidade instrumental. O Dr. Frankenstein tenta sem sucesso ser mestre de sua criatura.
“De totalmente dominadas, as técnicas se tornam totalmente dominates (...) No primeiro caso, o sujeito moral se crê mestre; no segundo, ele se crê escravo e se lamenta. Em ambos os casos, a filosofia crítica não consegue repensar a partilha entre o sujeito moral e o objeto neutro, puro instrumento – ela prefere manter no seu coração o rico tesouro do valor moral, que só ela conserva no meio do reino dos objetos indiferenciados e sem finalidade”. [LATOUR & BIBARD]
Latour e Bibard perguntam se, depois de milhões de anos, homens e técnicas não se mestiçaram. Sim, a própria técnica é um reflexo dos valores morais do sujeito e este se constitui e se amplia pela técnica. Homens e máquinas trocam propriedades (capacidades, valores etc.). É a própria forma do homem que está em questão na técnica. Poder e técnica se confundem. Não basta trocar os homens que se servem da técnica para reorientar as forças produtivas numa direção libertadora. Também não parece simples pensar a mudança da natureza da própria técnica. A distinção entre homem e técnica é estéril. Para não cair na paralisia nem na impotência cabe reconhecer que homem e técnica se mestiçam e se hibridam. Não há como escapar da técnica, da mesma forma que não há como fugir do mundo. Alguns homens de poder, apoiados pela técnica, dominam a multidão. E todos tendem a se reconciliar para que o híbrido homem-máquina domine a natureza. Para Latour e Bibard, o esforço crítico sobre a técnica não foi longe porque ela é sinônimo de poder. É, portanto, a própria idéia de dominação que está em questão. Isso produz um ‘paradoxo tecnófobo’: a técnica deve sr atacada porque capitaliza o poder; mas ao mesmo tempo, porque faz sistema, ela paralisa o mundo inteiro e torna impossível toda ação crítica.
Fica claro, portanto, que a construção do futuro terá de atravessar a discussão sobre a centralidade da tecnociência. Ela é necessária para evitar que crítica e prática tombem paralisadas pelo poder aparentemente incomensurável da aliança entre capital e ciência, deixando o capitalismo sozinho ‘dar conta do futuro’ e, provavelmente, alcançar a própria destruição, levando tudo e todos juntos.
Negri nos ajuda a confiar em outro destino quando pergunta, nas Cinco lições, o que significa ‘antipoder’ na sociedade da globalização imperial. Ele propõe que o verdadeiro antipoder tem de evitar movimentar-se em um plano puramente nacional e fugir da absorção pelo novo ‘constitucionalismo imperial’, ou seja, terá de se manifestar para além da representação política nacional e não se deixar constituir como uma ‘nova sociedade civil’ dentro das regras imperiais. O que fazer, então? Primeiro, ele responde, é preciso construir resistências a partir de baixo, pelo enraizamento nas situações sociais e produtivas. Trata-se de desestruturar, por meio de uma resistência militante, o poder dominante onde ele se acumula, se centraliza e de onde declara sua hegemonia. Segundo, essas lutas precisam encontrar uma coligação mundial, uma dimensão de circulação global. A proposta de repartição dos ganhos da tecnociência e a demanda por um salário social parecem atender a ambas condições.

3 – Salário social

Programa político
No último capítulo de Império, Negri e Hardt dedicam-se à questão da resistência, à oposição entre multidão e Império, e avançam na direção de um programa político da multidão global. A tarefa principal é investigar como a multidão pode tornar-se sujeito político. Começam assinalando que as revoluções do século 20, longe de derrotadas, criaram as condições de uma nova subjetividade política: a multidão insurgente contra o poder imperial. O Império é uma resposta a esta multidão. Sua constituição não é causa, mas conseqüência dos novos poderes produzidos pelos movimentos revolucionários.
A estrutura de Império contém um Intermezzo em que os autores se propõem a articular o caminho entre o reino das idéias e o da produção, penetrando mais profundamente no mundo em que as desigualdades se mostram mais claramente e onde surgem as resistências mais eficazes e as alternativas ao poder do Império. Eles recorrem a Marx para lembrar que as lutas proletárias constituem de fato o motor do desenvolvimento capitalista, obrigando o capital a adotar novas tecnologias e, assim, transformar os processos de trabalho. “As lutas forçam o capital continuamente a reformar as relações de produção e transformar as relações de dominação.” [HARDT & NEGRI, 2001: 228]
Se o poder do trabalho é a própria fonte do capital, o seu elemento mais interno, é também o exterior do capital, o lugar da recusa à exploração, da resistência e da revolução. Negri e Hardt observam que, em Marx, a relação entre interior e exterior no desenvolvimento capitalista é determinada na perspectiva dual do proletariado. Apontam, porém, que no mundo contemporâneo essa configuração espacial mudou. A exploração capitalista se estende por toda parte; não se limita à fábrica, ocupando todo o terreno social. De outro lado, as relações sociais alcançam todas as relações de produção. O poder de dominação já não tem um lugar determinado e a exploração não pode ser localizada e quantificada. É a própria capacidade universal de produzir – a atividade social abstrata e seu poder inclusivo – que passa a ser objeto de exploração e dominação. Mas o trabalho abstrato, sem lugar certo, é também poderoso.
“É o conjunto cooperativo de cérebros e mãos, mentes e corpos; é simultaneamente o não fazer parte e a difusão social do trabalho ativo; é o desejo e o esforço da miríade de operários móveis e flexíveis; e ao mesmo tempo é energia intelectual e lingüística e construção comunicativa de uma multidão de operários intelectuais e afetivos”. [HARDT & NEGRI, 2001: 229]
Negri e Hardt reposicionam a questão do republicanismo agora, no mundo contemporâneo. Apontam a ‘vontade de ser contra’ como elemento fundamental. Embora possa não parecer óbvio hoje, é natural que os explorados resistam e se rebelem. A questão não é por que o povo se rebela, mas por que não o faz. Chega-se, então, ao problema da identificação do inimigo contra o qual se rebelar. Isso não é fácil porque a exploração não tem lugar específico e porque estamos imersos num sistema de poder extremamente complexo. Mas o inimigo existe e também a resistência. A globalidade do comando é a imagem invertida da generalidade da produção da multidão. E esta imagem invertida não indica qualquer homologia. O poder imperial não pode disciplinar os poderes da multidão; pode apenas impor controles. Para os autores de Império, ser republicano hoje significa lutar dentro e construir contra a ordem imperial.
“A multidão, em sua vontade de ser contra e em seu desejo de libertação, precisa atravessar o Império para sair do outro lado”. [HARDT & NEGRI, 2001: 238]
Como? Como as ações da multidão se tornam políticas? A resposta está na história e também no poder produtivo atual da multidão. A mobilidade de indivíduos e populações que existe hoje no Império não pode ser subjugada completamente às leis da acumulação capitalista. A multidão circula, se reapropria de espaços e constitui-se como sujeito político. Migrações em massa são necessárias para a produção. Negri e Hardt perguntam: É possível imaginar a agricultura e o setor de serviços dos EUA sem o migrante mexicano, ou o petróleo árabe sem palestinos e paquistaneses? E onde estariam os setores inovadores do design, moda, eletrônica, ciência do chamado Primeiro Mundo sem a ‘mão-de-obra ilegal’ das multidões atraídas pelos horizontes da riqueza e da liberdade capitalistas? As ações da multidão se tornam políticas quando enfrentam a repressão do Império.
“É questão de reconhecer e dar combate às iniciativas imperiais e não lhes permitir que restabeleçam a ordem continuamente; é questão de contrariar e subverter os limites e segmentações impostos à nova força coletiva de trabalho; é questão de reunir esses instrumentos de resistência e empunhá-los de comum acordo contra os centros nervosos do poder imperial.” [HARDT & NEGRI, 2001: 423]
Mas esta tarefa, embora clara, ainda é abstrata. Que práticas concretas comporiam os projeto político da multidão global? Quais seriam os elementos do seu programa político?
Negri e Hardt apontam a ‘cidadania global’ como a primeira demanda política da multidão. É preciso que o status político da população acompanhe as transformações econômicas dos últimos anos. O capital é que exige mobilidade crescente da força de trabalho mundial e migrações além das fronteiras nacionais. Não faz sentido, portanto, falar em ‘mão-de-obra ilegal’, perseguir, restringir direitos e negar documentos aos trabalhadores migrantes. A expressão radical da demanda pela ‘cidadania global’ é o direito da multidão de ‘controlar o próprio movimento’. Se num primeiro momento a questão é o reconhecimento jurídico das migrações necessárias ao capital, depois a multidão deve exigir o controle de seus próprios movimentos.
Outra demanda da multidão é o ‘direito a um salário social’. Negri e Hardt voltam à Grécia Clássica para lembrar que Aristóteles teve o mérito de separar a definição de tempo da experiência individual e do espiritualismo, mostrando sua dimensão coletiva, mas o restringiu a um padrão de medida transcendente. De lá para cá (passando por Kant e Heidegger) o tempo tem sido delimitado dessa forma. Somente na pós-modernidade há um rompimento com essa configuração. Não com o primeiro elemento da definição aristotélica, que aponta a dimensão coletiva do tempo, mas com a configuração transcendente. O tempo passa a corresponder à existência coletiva e reside na cooperação do povo. Quando se compreende que todos produzem o tempo todo, fica impossível medir o trabalho, seja por convenção ou cálculo. A nova fenomenologia do trabalho da multidão o revela como atividade criadora fundamental, capaz de superar qualquer obstáculo e de recriar o mundo. A atividade da multidão constitui o tempo além da medida. A demanda por um salário social decorre, portando, dessa generalidade dos conceitos de produção e de proletariado. Não se trata de uma nova classe operária, mas da multidão cooperante total, ou seja, todos cujo trabalho é explorado pelo capital.
A terceira demanda política da multidão é ‘o direito à reapropriação’ dos meios de produção. É uma demanda antiga de socialistas e comunistas em todo o mundo. Agora, porém, ela toma novo aspecto. “A multidão não apenas usa máquinas para produzir, mas também se torna cada vez mais maquinal, enquanto os meios de produção são progressivamente integrados às mentes e aos corpos da multidão”. [HARDT & NEGRI, 2001: 430] Aqui, reapropriação quer dizer livre acesso e controle do conhecimento, informação, comunicação e afetos, os meios primários de produção biopolítica.
Alguns críticos afirmam que as propostas programáticas do capítulo final de Império são uma mistura de timidez reformista e utopismo impraticável. Porém, se são procedentes as reflexões e análises das mutações no capitalismo contemporâneo, é necessário que se pense e se discutam desde já propostas de mudanças socioeconômicas, mesmo que pareçam inconseqüentes ou delirantes de um ponto de vista bastante consolidado, mas que se revela cada vez mais deslocado e anacrônico, por não ter permitido sequer a percepção de muitos dos movimentos e problemas que estamos presenciando.
Negri e Hardt concluem Império resgatando o termo ‘posse’ desde a tradição renascentista. Por ter continuado a viver em resistência na tradição do pensamento moderno não transcendentalista, o termo metafísico tornou-se político. “Posse se refere ao poder da multidão e seu telos, um poder personificado de conhecimento e de ser, sempre aberto para o possível”. [HARDT & NEGRI, 2001: 432] É o ponto de vista que permite ver a multidão em sua subjetividade singular: constitui o seu modo de produção e seu ser. A posse pós-moderna substitui a república moderna. O que falta no confronto entre multidão e Império é a insurreição de uma poderosa organização. Não há qualquer modelo a oferecer para isso. Para Negri e Hardt, só a própria multidão, pela experimentação prática, oferecerá os modelos e determinará quando e como o possível se tornará real.
O arauto desta transformação é o militante. Depois de tantas vitórias capitalistas e desilusões socialistas, a militância ainda surge, a resistência se aprofunda e a luta revigora. A nova militância não é representativa, mas constituinte. É positiva, construtiva e inovadora. Repete das virtudes da ação insurrecional, mas está ligada a um mundo novo, que não conhece lado de fora, o mundo da cooperação produtiva e das redes afetivas.
É interessante observar que o texto de Império, publicado no início de 2000, começou a ser divulgado na imprensa antes do grande protesto antiglobalização de Seattle, em novembro de 1999 (Negri esclarece que a redação foi concluída em 1977). Como assinala Alan Rush [RUSH, 2002] – que se alinha entre os comentadores críticos do trabalho de Negri e Hardt – as manifestações de Seattle, embora não tenham sido a rigor a primeira batalha, inauguram, de fato, um novo ciclo global de lutas, o que confere aos dois pensadores um não desprezível caráter de premonitório.
Pagar a conta
O direito a um salário social é, então, uma das demandas da multidão global no âmbito do programa político anti-Império desenhado por Negri e Hardt. Esta proposta não é original e – como antecipamos no começo desta dissertação – consta tanto de receituários radicalmente comunistas como de formulações reformistas liberais. Muito se debate também sobre sua viabilidade e eventuais fontes de financiamento. Hoje, quando se fala, por exemplo, em fundos globais contra a pobreza – não necessariamente associados à idéia de salário social, mas visando problemas correlatos – cogita-se de taxações sobre transações financeiras, vendas de armas, poluição, entre outras fontes. Mas pouco se discute a redistribuição dos ganhos promovidos pela tecnociência, que constitui a maior fonte de riqueza e o grande motor da reprodução do capitalismo em sua forma atual. Parece que é exatamente isso que sustenta o tabu do desenvolvimento técnico-científico – sua sagrada autonomia em relação à sociedade – e a conseqüente intocabilidade de seus lucros. O que pretendemos analisar aqui é a correspondência natural e aparentemente óbvia entre esta grande capacidade de produzir riqueza e grande potencialidade de sustentar o novo modelo de civilização que surge com o deslocamento do trabalho como forma dominante na atividade humana.
A discussão do financiamento do salário social não é apenas um exercício intelectual, mas está implícito em propostas militantes, como a dos trabalhadores intermitentes franceses [12], que preconizam a taxação das ‘novas formas de riqueza’. Não há porque desconsiderar os ganhos econômicos da tecnociência, no âmbito deste debate, sob a pecha de projeto obscurantista e ameaça ao desenvolvimento técnico-científico. Os lucros promovidos pela tecnologia da informação, biogenética e outras áreas inovadoras estão na origem dessas ‘novas formas de riqueza’, cujos fluxos continuam a obedecer à lógica da economia industrial e do trabalho material, que rapidamente deixam de predominar no capitalismo contemporâneo. A riqueza existente para pagar o salário social nasce da aplicação das inovações na produção. Ao contrário do que a ideologia difunde e o senso comum acolhe, a comunhão dessa riqueza não é um entrave ao desenvolvimento técnico-científico. Ao contrário, o compartilhamento desses ganhos e do conhecimento produzido pela humanidade se traduz em sustentabilidade do processo de inovação, por estender seus benefícios a todas as pessoas e não apenas a grupos beneficiários cada vez mais assustados e armados contra a ameaça da multidão.
Também não se trata de pretender sacrificar a galinha dos ovos de ouro do sistema produtivo. Muito pelo contrário, as reflexões sobre o salário social e seu financiamento estão alinhadas com a busca de saída para os maiores impasses (obstáculos) da economia contemporânea. Apontam, além disso, para as possibilidades da geração de conhecimentos técnico-científicos e sua aplicação à produção liberarem o homem cada vez mais de formas de trabalho praticadas até hoje e que tendem a ser substituídas pelo trabalho imaterial em redes de cooperação. André Gorz, um dos principais estudiosos das mutações do trabalho no capitalismo contemporâneo, descreve da seguinte forma o beco sem saída em que a economia atual insiste em se embrenhar:
“Se produce un creciente volumen de riquezas con un volumen decreciente de capital y trabajo; en consecuencia, la producción distribuye a un número decreciente de activos un volumen decreciente de remuneraciones y de salarios; diminuye el poder de compra de una proporción creciente de la población; el desempleo, la pobreza, la miseria absoluta se expanden. La productividad rápidamente creciente del trabajo y del capital entraña un excedente de fuerza de trabajo y de capital. Éste busca agrandarse sin pasar por la mediación del trabajo productivo – por operaciones en los mercados financieros y los mercados de cambio – o invirtiendo en países con salarios muy bajos. Las actividades e inversiones no rentables a corto plazo (investigación, educación, servicios y equipamientos públicos, salvaguarda del medio ambiente, etcétera) dejan de ser financiables como consecuencia de la contracción de la masa de los salarios, pero también en razón de las exoneraciones fiscales que los Estados consienten al capital para frenar su éxodo.” [GORZ, 1998: 99]
Gorz entende que o tema do salário social é inseparável do desenvolvimento e da disponibilidade de meios que permitam a autonomia e a estimulem, isto é, os meios pelos quais os indivíduos e grupos possam satisfazer, através do seu trabalho livre, uma parte das necessidades e desejos que eles mesmos tenham definido. Para ele, as discussões sobre o valor do salário social – que remetem, conseqüentemente à temática do seu financiamento – não fazem muito sentido agora. Este debate obscureceria a questão de fundo relacionada às mutações em curso no capitalismo, localizando-se ainda no marco da sociedade salarial – cada vez menos importante – e buscando formas de financiamento por meio da distribuição de receitas fiscais geradas em um regime econômico e de trabalho que tende a deixar de ser predominante.
“Pero la perspectiva que se nos abre y en la cual hay que ubicarse es la de una regresión del trabajo-empleo, de las ventas de trabajo y de servicios y de un desarrollo de los equipamientos y de los servicios colectivos, de los intercambios monetarios y de las autoproducciones. Éstas, según Frithjoff Bergmann, podrían fácilmente cubrir el 70% de las necesidades y los deseos en los días de trabajo semanal.
Las fórmulas debatidas en la actualidad pueden acercar o alejar de ese término último, abrir esta perspectiva o cerrarla, ilustrar la necesidad de una ruptura o ignorarla. Sobre esta base hay que juzgarlas”. [GORZ, 1998: 94]
O tema, porém, está posto, na teoria e na prática. E cabe refletir a respeito de todos os seus aspectos ao menos para confrontar os questionamentos ao nível do senso comum e da ideologia dominante de que a idéia de uma renda mínima universal e desvinculada do trabalho seria um desvario extraterrestre.
Além do mais, estamos tratando do surgimento de uma sociedade diferente, anunciada em nosso dia-a-dia, que terá necessariamente novas formas de trabalho e de pagamento, uma nova noção de dinheiro e moeda, enfim, terá uma outra economia. E de qualquer ponto de vista que se disponha a antever essa nova sociedade, sempre será identificada a centralidade da tecnociência, a exemplo da intuição profética de Marx nos Grundrisse.
Mas, voltando ao presente, é curioso registrar que o Brasil – apesar ou mesmo devido às suas características de país periférico e socialmente desigual – já percorreu um bom pedaço do caminho na direção do salário social. A idéia foi transformada em lei pelo presidente Lula no início deste ano, depois de tramitar durante 14 anos no Congresso Nacional, por iniciativa do senador Eduardo Suplicy. Embora seja um passo importante, trata-se, na prática, de não mais que uma autorização ao governo para pagar uma renda básica a todos os brasileiros, sem estabelecer valores e prazos rígidos. É claro que a questão do financiamento está posta. De onde vem o dinheiro? Esta é, sem dúvida, a primeira pergunta que ocorre toda vez que o tema é examinado em qualquer lugar. O governo brasileiro informou que ainda não tem os recursos e que pretende implantar o salário social gradativamente a partir do próximo ano, provavelmente remanejando outros programas de transferência de renda para os pobres. Segundo o senador Suplicy, o único lugar no mundo em que a renda mínima está implantada regularmente, com a característica de direito incondicional de toda população, é o estado do Alasca.
Existem programas de transferência de renda para pessoas e famílias pobres em diversos países, sob inúmeras formas, mas sem o caráter de incondicionalidade e universalidade.
Antes de avançar na discussão sobre o financiamento do salário social, cabe recapitular alguns dos seus principais fundamentos e problemas, com a ajuda de André Gorz. Ele destaca que a garantia incondicional e universal de renda terá um sentido completamente diferente caso ela seja insuficiente ou suficiente para proteger contra a miséria. [13]
A renda mínima ‘insuficiente’, segundo seus partidários, deve substituir os mecanismos redistributivos, como seguro desemprego, dotações para alimentação e moradia, entre outros. Uma renda inferior ao mínimo vital força o desempregado a aceitar trabalhos penosos e de baixa remuneração. Esta é a proposta dos neoliberais da escola de Chicago e de outras correntes liberais e conservadoras. Para eles, o desemprego se explica porque a remuneração ‘suficiente’ do trabalho de baixa qualificação e baixa produtividade não é rentável para as empresas. Portanto, é preciso subvencionar estes empregos assegurando-se uma renda social insuficiente para viver que se somaria a uma renda do trabalho igualmente insuficiente. Assim, protege-se o mercado da competição de países que praticam salários mais baixos e também dos dispositivos do direito do trabalho, condenados a desaparecer. Quanto mais baixa a renda básica, mais forte é a indução a aceitar qualquer trabalho e mais se desenvolvem as empresas voláteis em termos de localização e subcontratação de serviços. Gorz inclui na categoria de renda mínima ‘insuficiente’ o sistema do ‘workfare’ norte-americano, que associa o direito a uma renda baixa à obrigação de realizar trabalho de ‘utilidade social’, e à proposta de uma ‘renda de existência’ universal e incondicional, mas também muito baixa, proposta na França, para indenização ao desemprego e estímulo ao trabalho intermitente.
“Un ‘ingreso de existencia’ muy bajo es, de hecho, una subvención a los empleadores. (...) El ingreso continuo para un trabajo discontinuo revela de tal manera sus trampas. A menos, entendámoslo bien, que las intermitencias del trabajo, su discontinuidad se relacione no ya con el poder discrecional del capital sobre el trabajo, sino con el derecho individual y colectivo de los prestatarios de trabajo a la autogestión de su tiempo”. [GORZ, 1998: 93]
Para Gorz, o pagamento de um salário social ‘suficiente’ a todos os cidadãos atende a uma lógica diferente da que sustenta a proposta de uma renda ‘insuficiente’. Não se trata de forçar a aceitação de qualquer tipo de trabalho em qualquer condição, mas de libertar as pessoas das restrições do mercado de trabalho. Deve permitir a todos arbitrar constantemente entre o valor de uso de seu tempo e seu valor de troca, ou seja, entre os bens que pode comprar vendendo tempo de trabalho e as que pode produzir pela autovalorização deste tempo. Não se deve compreender o salário social como uma forma de assistência nem de proteção social, que torna as pessoas dependentes do Estado. É preciso entendê-lo como a transferência aos indivíduos e grupos de meios e poderes crescentes para tomarem conta de suas próprias vidas. Não se trata de dispensar o trabalho, mas de restabelecer o direito ao trabalho concreto, que se faz sem que seja necessário ser pago, sem valor de troca.
A pergunta sobre a origem do dinheiro para pagar a renda social põe em evidência, segundo Gorz (aqui, ele próprio não teme obscurecer o sentido maior das mutações do capitalismo), o beco sem saída em que se enfiou o sistema. Por mais que o tempo de trabalho tenha deixado de ser a medida da riqueza criada, ele continua sendo a base de geração das transferências de renda para os pobres e dos gastos sociais do Estado. Ou seja, a economia enfrenta uma situação em que as somas a distribuir para cobrir necessidades individuais e coletivas tendem a superar as somas geradas pela produção.
Portanto, não é somente a renda social que não é financiável sob essas bases; são todos os gastos do Estado e da sociedade que estão em cheque. Não deixa de ser irônico que isso esteja ocorrendo quando o engenho humano possibilita a criação de riqueza com cada vez menos trabalho. Gorz cita a metáfora criada por Wassily Leontieff: ‘Quando a criação de riqueza não depender mais do trabalho dos homens, eles morrerão de fome às portas do Paraíso, a menos que se estabeleça uma nova política de renda correspondente à nova situação técnica’.
Embora pareça um sonho impossível, o salário social ‘suficiente’ para todos deve ser pensado e viabilizado desde já. Trata-se, como vimos, uma tendência que se insere na perspectiva proposta nos Grundrisse por Marx no âmbito dos desdobramentos do capitalismo pós-industrial e do surgimento de um novo modo de produção, cujo limiar estamos começando a perceber. Pensada no extremo de suas conseqüências, esta proposta equivale, segundo Gorz, a uma comunhão das riquezas socialmente produzidas. Uma comunhão e não uma ‘repartição’, que vem depois. Comunhão é o compartilhamento entre todos do que é de todos e, em conseqüência, não é de ninguém. Assim, o princípio de ‘a cada um de acordo com o seu trabalho’ se torna caduco na lógica econômica que se anuncia.
Aos muitos que consideram irrealista a idéia do salário social garantido e/ou afirmam que se trata de uma demanda ilegítima tanto do ponto de vista da economia como da ética (por não oferecer contrapartida em termos de criação de riqueza), vale examinar o ensaio de Carlo Vercellone, ‘Mutations du concept de travail productif et nouvelles normes de répartition’. [VERCELLONE, 2003] Ele demonstra que a demanda é legítima e que os recursos para viabilizá-la já podem ser mobilizados.
Quanto à legitimidade, Vercelone assinala que a contrapartida de trabalho ao salário social já existe, cabendo conferir este fato de duas maneiras: 1) pela valoração do impacto do ‘trabalho social’, oculto das estatísticas econômicas, na formação do PIB e; 2) pelo cômputo das ‘externalidades positivas’ que a economia não mercantil propicia à economia mercantil, em especial a crescente contribuição do conhecimento coletivo nos ganhos de produtividade e de inovação.
Sobre a disponibilidade de recursos para pagar o salário social, Vercelone também propõe duas abordagens: 1) considerar, por um lado, o conjunto das transferências de renda já praticadas em inúmeros países, a cujo valor podem ser acrescidas as economias propiciadas pela simplicidade da implementação do salário social, além do valor decorrente de remanejamentos possíveis das taxações sobre as rendas do capital e do trabalho; e 2) reconsiderar, por outro lado, as próprias noções de trabalho produtivo e riqueza, à luz das mudanças introduzidas na economia global no contexto do ‘capitalismo cognitivo’.
Parafraseando os Grundrisse, André Gorz assinala que o trabalho produtivo imediato vai sendo substituído como força produtiva principal pelo ‘nível geral da ciência (...) e sua aplicação à produção’, quer dizer, pela capacidade dos ‘indivíduos sociais’ de tirar partido da tecnociência e fazê-la funcionar pela auto-organização de sua cooperação. Então, ‘o livre desenvolvimento das individualidades’ pela ‘redução ao mínimo do trabalho necessário’ e a produção de valores de uso em função das necessidades, é o que ocorrerá no fim.
A proposta do salário social universal e ‘suficiente’ tem, portanto, um valor heurístico, explorando no sentido mais radical as tendências que se abrem na evolução presente da sociedade. Ela põe a nu, como destaca Gorz, um sistema que realiza economias de tempo de trabalho sem precedentes, mas transforma este tempo liberado em uma calamidade, porque não consegue distribuí-lo, nem distribuir as riquezas produzidas ou produtíveis. Trata-se de um sistema incapaz de reconhecer o valor intrínseco do ‘ócio e do tempo para as atividades superiores’, antevisto por Marx.
O debate sobre o salário social leva, então, à porta de entrada da nova sociedade que se configura como conseqüência das tendências em curso. André Gorz assinala que o ato de explicitar esta perspectiva é necessário para dar às mutações atuais o sentido mais elevado que podem ter e, além disso, para que se possam desenvolver práticas para atualização deste sentido e de apropriação destas mutações. O salário social remete a uma sociedade na qual todos são solicitados por uma abundância de atividades artísticas, desportivas, tecnocientíficas, políticas, filosóficas; na qual os meios de produção são acessíveis a todos, como já começam a ser hoje os bancos de dados e as formas de trabalho à distância; na qual as trocas são fundamentalmente de conhecimentos e não de mercadorias, sem a mediação necessária do dinheiro; na qual a imaterialidade do trabalho corresponda à imaterialidade da forma principal de capital fixo. Trata-se, portanto, de tirar partido do saber acumulado pela humanidade para a própria humanidade.
Para André Gorz, este é o sentido em que deve ser entendida a observação de Marx nos Grundrisse de que ‘o tempo livre, o tempo para o pleno desenvolvimento do indivíduo (...) pode ser considerado, do ponto de vista do processo de produção imediato, como produção de capital fixo, esse capital fixo being man himself’. O tempo livre, desta forma, permite aos indivíduos desenvolverem capacidades que lhe conferem uma produtividade quase ilimitada e isso não é trabalho (Gorz registra que Negri e Hardt sustentam que se trata de trabalho) por mais que tenha o mesmo resultado que o trabalho ‘do ponto de vista do processo de produção imediato’. Não é trabalho porque se tornou possível graças à (Gorz volta a citar os Grundrisse) ‘redução a um mínimo cada vez mais baixo do tempo de trabalho necessário para a sociedade’, Este tempo liberado é o que permite o ‘livre desenvolvimento das individualidades’, que, por sua vez, reaparece na produção como uma capacidade ilimitada de criar riquezas com pequeno gasto de tempo e de energia. Dito de outra forma: “el aumento de la capacidad productiva de los individuos es la consecuencia y no el fin de su pleno desarrollo. El fin no es – y esto es lo que ‘man’ difiere de ‘capital fijo’ – llevar al máximo la producción por la producción, el poderío por el poderío, sino economizar el tiempo de trabajo y el gasto de energía necesarios para el desarrollo de la vida’. [GORZ, 1998: 103]
Gorz resgata a citação do ricardiano anônimo citado por Marx nos Grundrisse – ‘Uma nação é verdadeiramente rica quando em vez de 12 horas se trabalham 6’ – sentenciando que é impossível dizer de forma mais clara que o pleno desenvolvimento das forças produtivas dispensa o pleno emprego das forças produtivas (em particular da força de trabalho) e faz da produção uma atividade assessória. Pode-se concluir, segundo Gorz, que a produtividade ‘gigantesca’ que a tecnociência dá ao trabalho humano impõe como fim imanente da razão econômica maximizar o tempo disponível e não maximizar a produção. Assim, ‘a verdadeira economia – a que economiza – é economia de tempo de trabalho’ (Grundrisse), é a que leva a eliminação do trabalho como forma dominante de atividade. É este deslocamento da centralidade do trabalho e a sua substituição pela atividade criativa pessoal que deve se tornar politicamente realizável a partir das mutações que ocorrem desde agora.

2 – Periodização do capitalismo

Os ecos dos conceitos desenvolvidos em Império reverberam com intensidade no âmbito do pensamento crítico. Uma das discussões refere-se à proposta de periodização do capitalismo e ‘seus modos de regulação’. Como assegurar que o imperialismo deu lugar ao Império? Como atestar a superação do Estado-nação, se os Estados Unidos se impõem como potência hegemônica? Ao problematizar a proposta de periodização de Negri e Hardt, o professor argentino Nestor Kohan [KOHAN, 2002] diz que Império tenta dar alcance universal e homologar três processos diferentes ao mesmo tempo – passagem do imperialismo ao Império, da modernidade à pós-modernidade e do fordismo ao pós-fordismo – adotando uma ótica estritamente eurocêntrica e usando como parâmetro exclusivo as lutas da chamada autonomia italiana, uma experiência provinciana, restrita ao norte da Itália entre os anos 60 e 70, na qual Negri se envolveu pessoalmente.
Todo um capítulo das Cinco lições – a ‘Lição 1’ – é dedicado à discussão metodológica da periodização, procurando repensar o tema da causalidade histórica a partir de Marx, em especial a função teleológica como relação determinista.
Retomando os conceitos de capital e capitalismo como categorias de uma relação entre quem comanda e quem obedece, quem subordina e quem é subordinado, Negri propõe que a globalização não é uma expansão linear de mercado que varre o Estado-nação e impõe o Império. É o Estado-nação que se torna incapaz de controlar a relação de capital.
A soberania, entendida como comando da relação de forças que constitui o capital, estava no Estado-nação durante a modernidade. Mas agora, no pós-moderno, a soberania está em outro lugar, provavelmente no Império, segundo Negri. Ele aponta uma sucessão de acontecimentos, a partir do ano de 1968, que definiram essa ruptura: a falência da paridade fixa do dólar, a primeira crise do petróleo e o tratado de paz nuclear, que ocorreram entre 1971 e 1972. Fica explícita, a partir daí, a impossibilidade de se garantir o desenvolvimento capitalista por meio dos instrumentos da regulação soberana interna ao espaço-nação.
Isso ocorre simultaneamente ao fim da fase imperialista do desenvolvimento do capitalismo, entendendo-se por imperialismo o processo expansionista do poder do Estado-nação mediante ocupação de áreas de influência. Também se verifica, um pouco depois, o desmoronamento do regime soviético.
Segundo Negri, são as lutas antiimperialistas e anticoloniais e, também, os movimentos pela liberdade no contexto do ‘socialismo real’ que provocam o esvaziamento do Estado-nação como garantia soberana do desenvolvimento capitalista. É este conjunto de lutas que impõe a constituição do Império, o não-lugar onde passa se concentrar a soberania que assegura o desenvolvimento capitalista no cenário da globalização.
Essa metodologia – que assume as lutas do proletariado como motor do desenvolvimento – vem, segundo Negri, do ‘operaismo italiano’, do marxismo renovado que, desde o final dos anos 50 até a crise definitiva do movimento comunista internacional, constrói a categoria ‘autonomia da classe operária’. Ele dá o mérito a Mario Tronti de ter formalizado em Operai e capitale as hipóteses teóricas que permitiram pensar numa espontaneidade nos movimentos de classe que se opunha ao determinismo causal clássico marxista. Esse rompimento do mecanicismo teleológico permitiu considerar os movimentos de capital como movimentos sociais ou eventos de ruptura. A revolução deixou de ser um prazo objetivo, o limite para o qual se inclinavam os fatores materiais que a taxa de lucro criava, mas a acumulação de processos subjetivos de massa, um evento.
No mesmo período, na França, alguns autores no âmbito estruturalista e pós-estruturalista, notadamente Foucault e Deleuze, chegaram a conclusões semelhantes na crítica da causalidade determinista. Isso também é corroborado, segundo Negri, por correntes de pensamento nos Estados Unidos e na América Latina, da mesma forma que pelos estudos subalternos, os ‘Subaltern Studies’, da escola indiana de Rabajit Guha, que se dissemiram no mundo anglo-saxão.
O problema da causalidade histórica conduz, segundo Negri, a uma discussão sobre o sujeito. Ele fala de uma subjetividade que deve ser percebida não mais em termos negativos, e sim constitutivos. Propõe, para isso, uma leitura do processo histórico em termos de descontinuidade, nunca como um processo linear e determinista. Assim, se o Império existe, é porque uma série de relações de forças singulares se determinaram, assim como eventos imprevisíveis se realizaram. Do ponto de vista da análise causal, o desenvolvimento histórico não é pré-imaginável de nenhuma maneira, mas depende sempre das ações dos sujeitos dentro do processo. E esta ação – se for reportada à autonomia da classe operária – resulta sempre em uma ação desmedida, no sentido de ‘fora da medida’ e ‘além da medida’.
A questão da ‘medida’ remete a outro aspecto da metodologia adotada por Negri. Embora confirme o ‘trabalho’ como centro de qualquer processo produtivo e de luta, esta metodologia retira do conceito de valor o caráter de explicação causal do percurso histórico. Trata-se da desvinculação do trabalho dos critérios de medida adotados na economia clássica, de Smith a Marx. Para Negri, é preciso pensar as transformações reais que ficam por trás dos processos de valorização. A própria ‘lei do valor’ se relaciona a uma fase específica da organização do trabalho, que podia ser medido por unidade de tempo trabalhado. Hoje, a valorização ocorre de modo diferente, através da socialização do trabalho. É nesse novo período que a causalidade histórica deve ser definida.
Na medida em que a sociedade é subsumida pelo capital, diz Negri, toda relação social se torna, em algum sentido, uma relação produtiva. Neste momento, as relações de soberania e de capital se tornam passíveis de sobreposição. O centro da exploração se desloca diretamente para o social. A crise da lei do valor e, portanto, a desmedida da relação de exploração, a expropriação que ocorre em qualquer nexo social e em particular sobre a cooperação, introduz o imediatismo do comando. O comando não é mais algo que se acrescenta de fora ao processo de exploração, mas algo que o organiza.
Para definir os períodos do desenvolvimento capitalista, Negri propõe a observação de um conjunto de transformações que qualificam o sujeito proletário (sua composição técnica e política) nas diversas formas de organização do trabalho e da sociedade:
- os processos laborais e suas modificações- as normas de consumo e de reprodução social- os modelos de regulação econômica e política- a composição política de classe.
Ele analisa dois períodos característicos da ‘grande indústria’. O primeiro, que Marx estudou mais, vai até o início dos anos 20, quanto ocorre a ruptura do ‘operaismo’ em relação ao Estado-nação com a Primeira Guerra Mundial, a Revolução bolchevista e o ciclo de lutas que se segue. O segundo período da ‘grande indústria’ vai, segundo Negri, até 1968. Ele assume esta data simbólica como ponto de chegada de alguns elementos radicais de novidade:
- Nova forma de trabalhar: com a automação da produção e a informatização social, o trabalho material imediatamente produtivo perde a sua centralidade e emerge a figura do ‘operário social’ como intérprete das funções de cooperação laboral veiculadas pelas redes produtivas sociais.- Novas normas de consumo: passam a se expressar em formas de individualismo, que persegue a difusão e a singularização sociais do desenvolvimento produtivo.- Novo modelo de regulação: situa-se ao redor de linhas multinacionais, passando primeiro através de dimensões monetárias e, depois, através da função político-imperial.- Nova composição do proletariado: torna-se social, cada vez mais imaterial do ponto de vista da substância do trabalho; é móvel, multiforme e flexível do ponto de vista de suas formas.
Neste ponto, Negri assinala que a validação deste método e a confirmação do esquema de relação causal da gênese do Império e de sua ordem interna significa que estamos vivendo hoje uma situação muito crítica, em que as categorias de trabalho, capital, Estado, direito, nação e, portanto, de sociedade internacional, entre outras, que o moderno no legou, estão provavelmente obsoletas.
“Todavia, se precisamos começar a nos movimentar em outras determinações conceituais, isso quer dizer que estamos diante de um salto qualitativo, no qual os motores e os processo que até agora sustentaram nosso raciocínio sobre os motivos e a transformação das épocas capitalistas estão, eles mesmos, de alguma maneira, em discussão. Isto é, o fato de que haja um evento como a constituição de um comando mundial significa que existe um salto na explicação científica, que modifica tudo e nos obriga a reconsiderar as categorias com as quais trabalhamos até o presente momento, e a considerar as categorias passadas destinadas ao desuso”. [NEGRI, 2003: 68]
Quando fala de ‘passagem do moderno ao pós-moderno’, Negri enfatiza o fim das categorias do moderno. Insiste em uma concepção de causas históricas que tem na dinâmica das lutas a razão da transformação da realidade, da ruptura conceitual e, também, requer o surgimento de um novo léxico.
Ao defender a metodologia que assume as lutas proletárias como motor social, Negri reitera que o ‘operaismo’ italiano enfrentou eficazmente o problema da causalidade marxista como relação determinista. Contribuiu, assim, para um novo método da causalidade histórica que exclui interpretações deterministas sub-reptícias. Continuidade e da descontinuidade do tempo marxista passam a ser consideradas em um horizonte ‘intempestivo’. Abrem-se, assim, outras possibilidades de análise. Entendida de forma descontínua, a temporalidade capitalista torna-se constitutiva, enquanto a intempestividade remete à subjetividade. “Na descontinuidade do tempo produtivo determina-se assim uma passagem ontológica, ser constituído é sempre e novamente ser constituinte...”. [NEGRI, 2003: 71]
As análises que pretendem livrar o pensamento marxista dos vínculos deterministas levam a um deslocamento do objetivo ao subjetivo, ‘a uma definição de causa como se fosse enervada por atos constitutivos’. [NEGRI, 2003: 71] Trata-se de uma causação ontológica. A desmistificação que Tronti propôs da relação capitalista, tornando-a relação intersubjetiva (o capital como relação, operários e capital como opostos), passa a desenvolver-se em uma dimensão constitutiva, tornando plausível a rearticulação de uma teoria da causação histórica. Negri conclui:
“Naturalmente, no que concerne aos problemas de periodização, precisamos ter presentes os mesmos pressupostos. Dos dois caminhos que seguimos, um está conectado com a transformação das categorias do trabalho, e se poderia definir assim: da acumulação originária à hegemonia do imaterial; o outro assume a relação entre categorias do trabalho e categorias do Estado, e se poderia definir assim: a superação imperial do Estado-nação. Na base de ambos esses pontos de vista, está a conscientização da transição do moderno ao pós-moderno”. [NEGRI, 2003: 71-72]
Resta, no entanto, refletir sobre o papel dos Estados Unidos na sociedade global do presente. Se o Estado-nação tornou-se incapaz de controlar a relação de capital e se o Império é a resposta à impossibilidade de garantir o desenvolvimento capitalista por meio da regulação interna ao espaço nacional, como fica a questão da hegemonia norte-americana, que se impõe em todos os lugares e em todos os âmbitos, da cultura à economia, da política à força militar?
Na contra-corrente das principais linhas do pensamento político contemporâneo, Negri e Hardt sustentam em Império que os Estados Unidos e nenhuma outra potência podem ser o centro de um novo projeto imperialista. Ao reanalisar esta afirmação à luz das intervenções militares que se sucederam à publicação (2000) do livro e ao 11 de setembro de 2001, Negri reitera que a soberania imperial não tem como objetivo a assimilação político-territorial de países e povos, como era típico do imperialismo e do colonialismo. Reafirma também que o comando imperial quer garantir – por aparatos políticos, jurídicos e militares – a ordem global e uma paz estável que permitam o funcionamento do mercado. Ele assinala, ainda, que não se deve confundir os Estados Unidos e a ideologia e a prática ‘imperialista’ do governo Bush com o governo do Império. Pelo contrário, esse movimento atual do poderio norte-americano estaria em rota de colisão com as forças capitalistas que constituem o Império.
O antiamericanismo confunde o povo americano com o estado americano e não dá conta de que os Estados Unidos estão inseridos no mercado mundial como os outros países e que a política de Bush é minoritária no âmbito do capitalismo multinacional. O antiamericanismo seria, assim, “um estado de espírito perigoso, uma ideologia que mistifica os dados da análise e cobre a responsabilidade do capital coletivo” [NEGRI, 2003: 31]. Negri acrescenta que a liderança dos Estados Unidos está, na verdade, enfraquecida justamente por suas tendências imperialistas. E cita duas boas notícias em meio aos terrores e temores do presente: o superpoder militar americano está em parte neutralizado pela impossibilidade de usar o potencial nuclear, enquanto do ponto de vista monetário, o país está cada vez mais exposto e vulnerável nos mercados financeiros. Negri aposta na probabilidade de que os Estados Unidos serão logo obrigados a reconhecer o Império.
Também cabe referência aqui a algo que vem se delineando com crescente velocidade e maior nitidez no campo da resistência. Talvez possa ser outra notícia positiva. Trata-se de acontecimentos protagonizados pelo que se denomina ‘nova sociedade civil global’, que utiliza meios tecnológicos (como a Internet e telefones celulares) para se manifestar e existir independentemente das instituições políticas e do sistema midiático. Além dos incontáveis exemplos locais, nacionais e regionais, destacam-se eventos de impacto mundial como as manifestações pela paz em fevereiro de 2003 e a derrota eleitoral do primeiro-ministro José María Aznar na Espanha depois dos atentados terroristas em março de 2004. Aquelas manifestações e a virada nos rumos da eleição espanhola são acontecimentos deflagrados de forma muito rápida, quase instantânea, autônoma, independente de um comando central de controle, constituindo um espaço público desterritorializado de organização, diálogo e decisões coletivas. O poder dessa ‘nova sociedade civil’ é evidente, como também é a corrida do mercado para cooptá-la e do poder imperial para constitucionalizá-la.

1 – Resistência ao Império

Biopoder e biopolítica
Partindo das análises de Foucault sobre o biopoder, feitas no decorrer da década de 70, Simone Sobral Sampaio pergunta, na introdução de sua dissertação de doutorado [SAMPAIO, 2003: 3], se é possível falar em resistência hoje, quando a sociedade inteira encontra-se absorvida pela lógica do capital e sob um processo de controle, que conjuga a gestão política, econômica e social dos corpos.
Ela assinala que o biopoder, na visão foucaultiana, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que vem ocorrendo graças à sujeição dos corpos ao aparelho de produção e à subordinação das populações aos processos econômicos. Simone Sampaio lembra que, para Foucault, o regime de poder contemporâneo engloba todos os campos sociais e age em níveis micro e macro, produzindo máxima eficácia política e deixando poucas lacunas para atitudes de resistência ou de desobediência. Trata-se de “um regime de poder que funciona por conexões, encaminhamentos, complementaridades, delimitações em um emaranhado jogo de apoio”. [SAMPAIO, 2003: 3] O capital, assim, mantém sua hegemonia, não de modo conservador, mas por transformações ininterruptas.
Desde Marx, que a crítica indaga sobre a capacidade de autopreservação e expansão do capitalismo através de mudanças contínuas. No início dos anos 60, o tema foi analisado por um dos expoentes da escola de Frankfurt [10], Herbert Marcuse, cujo pensamento exerceu importante influência nos movimentos de rebeldia e contestação que marcaram aquele período. Marcuse procurou avançar na crítica ao capitalismo, radicalizando a análise da força totalizante do sistema de dominação e apontando sua capacidade de acomodação de opostos e integração de contrários. Ao mesmo tempo em que reformulava um dos pilares da teoria original de Marx – aquele que sustenta o fim do capitalismo em decorrência do acirramento de suas próprias contradições – ele denunciava o estado de paralisia do criticismo naquele momento e colocava a questão da tecnociência no centro da discussão sobre a sociedade industrial avançada.
“O progresso técnico, espalhado por um inteiro sistema de dominação e coordenação, cria formas de vida (e de poder) que surgem para reconciliar as forças que se opõem ao sistema e para derrotar e refutar todo protesto em nome das perspectivas históricas de liberdade, contra o estorvo e a dominação.” [MARCUSE, 1968].
A acomodação de interesses – mesmo opostos e conflitantes – para evitar a mudança social parece ser, segundo o filósofo frankfurtiano, a realização mais singular da sociedade industrial avançada. O desenvolvimento capitalista modificou a estrutura e a função das duas grandes classes que se opunham desde a origem do sistema – burguesia e proletariado – ao ponto de deixarem de ser agentes de transformação histórica. O interesse de preservação e otimização do status quo passou a unir os antigos antagonistas. Este diagnóstico de Marcuse antecede, como sabemos, algumas décadas a derrocada da União Soviética, a abertura chinesa ao capitalismo e a hegemonia do pensamento neoliberal. Ele observa que na falta de agentes perceptíveis de mudança social, a crítica é empurrada para a abstração, pensamento e ação não se encontram e a discussão de alternativas passa ao campo da especulação.
Marcuse afirmava em 1964 que, apesar da paralisia da crítica, a mudança qualitativa é mais urgente do que nunca e necessária a toda a sociedade, a cada um de seus membros, mesmo aos supostos beneficiários do sistema, que une crescente produtividade com crescente destruição e cria prosperidade e miséria sem precedentes. O fato de ser aceito pela maioria das pessoas não torna o sistema menos irracional. Os homens têm de distinguir seus interesses imediatos dos interesses reais. É exatamente a consciência da necessidade de mudar que o sistema trata de reprimir, “usando a conquista científica da natureza para a conquista científica do homem.” [MARCUSE, 1968] O aparato produtivo tende a se tornar totalitário na medida em que determina ocupações, habilidades, atitudes e, também, necessidades e aspirações individuais. A tecnologia, segundo Marcurse, cria formas mais amenas e efetivas de controle e coesão social. Esta tendência totalitária espalha-se por todo o mundo, mesmo pelas regiões pré-industriais, e cria similaridades entre capitalismo e comunismo.
Quase 30 anos depois – portanto a uma distância maior do apogeu da forma industrial capitalismo e já no alvorecer de sua versão pós-fordista – os comentários de Deleuze ao pensamento de Foucault referendam um dos aspectos do diagnóstico marcusiano, aquele que se refere ao acirramento da tendência totalitária do sistema. A dominação torna-se absoluta, exercendo-se não apenas pelo confinamento, característico da sociedade disciplinar, mas em todos os lugares e todos os momentos. Não há, porém, nada de ameno no processo. Em entrevista a Negri para a primeira edição de Futur Antérieur, em 1990, Deleuze assinala que Foucault foi dos primeiros pensadores anunciar a passagem da sociedade disciplinar, mais típica da forma moderna do capitalismo, para o regime de controle, predominante na vida atual. Deleuze destaca que o novo regime é ainda mais opressor:
“Face às formas próximas de um controle incessante em meio aberto, é possível que os confinamentos mais duros nos pareçam pertencer a um passado delicioso e benevolente”. [DELEUZE, 1992: 216]
Referindo-se na mesma entrevista a Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia, escrito com Guattari, Deleuze admite que ambos continuam marxistas, “talvez de maneiras diferentes”, e revela que “a análise do capitalismo como sistema imanente que não pára de expandir seus próprios limites” é o que mais lhes interessa em Marx. Mas propõem uma interpretação não-dialética dos termos e do significado das contradições na sociedade contemporânea:
“Mille plateaux indica muitas direções, sendo estas as três principais: primeiro, uma sociedade parece definir-se menos por suas contradições que por suas linhas de fuga, ela foge por todos os lados, e é muito interessante tentar acompanhar em tal ou qual momento as linhas de fuga que se delineiam. (...) Há uma outra direção em Mille plateaux, que já não consiste apenas em considerar as linhas de fuga mais do que as contradições, porém as minorias de preferência às classes. Enfim, uma terceira direção, que consiste em buscar um estatuto para as ‘máquinas de guerra’, que não seriam definas de modo algum pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos: os movimentos revolucionários (...), mas também os movimentos artísticos são máquinas de guerra.” [DELEUZE, 1992: 212]
Negri pergunta a Deleuze nesta entrevista se as sociedades de controle suscitarão formas de resistência capazes de abrir oportunidades a um comunismo concebido como ‘organização transversal de indivíduos livres’. Estamos no limiar de uma revolução subjetiva e, portanto, radicalmente transformadora da sociedade? Deleuze responde um ambíguo “Não sei, talvez”. Descarta que isso dependa da retomada da palavra pelas minorias, porque a comunicação estaria totalmente apodrecida pelo dinheiro. A resistência dependeria mais de criação que de comunicação. Para Deleuze, os processos de subjetivação só valem quando “escapam tanto dos saberes constituídos como dos poderes dominantes”, mesmo se “engendram novos poderes ou tornam a integrar novos saberes”. É nesse “preciso momento que eles têm efetivamente uma espontaneidade rebelde”. Ele prefere falar em “novos tipos de acontecimento” que de processos de subjetivação:
“É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle”. [DELEUZE, 1992: 218]
Negri e Hardt empreendem em Império esforço de sistematização de um grande conjunto de contribuições à interpretação crítica do capitalismo contemporâneo. Eles retomam a linha de pensamento de Foucault, Deleuze e Guattari em que o biopoder se refere à produção social e à reprodução da própria vida, constituindo o paradigma de poder na sociedade de controle. Na sociedade disciplinar, os efeitos das tecnologias biopolíticas eram parciais. A disciplina conseguiu fixar os indivíduos dentro de instituições, mas não pôde consumi-los no âmbito das atividades produtivas. A invasão disciplinar correspondeu à resistência do indivíduo. No reino do biopoder, ao contrário, todo o corpo social é abarcado e a sociedade reage como um só corpo. O poder se realiza como um controle que abarca a consciência e os corpos da população e se exerce na totalidade das relações sociais. Negri e Hardt observam que o “poder só pode adquirir comando efetivo sobre a vida total da população quando se torna função integral, vital, que todos os indivíduos abraçam e reativam por sua própria vontade”. [HARDT & NEGRI, 2001: 43]
Na passagem da disciplina para o controle, o capitalismo teria alcançado, então, o que sempre buscou, ou seja, a relação cada vez mais intensa de mútua implicação de todas as forças sociais. Mas abre simultaneamente novas e poderosas possibilidades de resistência. Negri e Hardt destacam que essa análise avança em relação ao processo descrito por Marx, na dimensão econômica, da passagem da subordinação formal para a subordinação real do trabalho ao capital. Também é mais ampla que as investigações realizadas no âmbito da escola de Frankfurt de uma transição relacionada à subordinação da cultura e das relações sociais à figura totalitária do Estado ou ao projeto iluminista.
“A análise da subordinação real, entendida como envolvendo não apenas a dimensão econômica ou apenas a dimensão social da sociedade mas também o próprio bios social, e quando está atenta às modalidades de disciplinaridade e/ou controle, desfaz a figura linear e totalitária do desenvolvimento capitalista. A sociedade civil é absorvida pelo Estado, mas a conseqüência disso é uma explosão dos elementos previamente coordenados e mediados na sociedade civil. As resistências deixam de ser marginais e tornam-se ativas no centro de uma sociedade que se abre em redes; os pontos individuais são singularizados em mil platôs.” [HARDT & NEGRI, 2001: 44]
Os autores de Império assinalam que Deleuze e Guattari desenvolveram as reflexões originais de Foucault, identificando no biopoder possibilidades de resistência semelhantes às dos regimes que o precederam, mas agora tornadas mais potentes como resultado do paradoxo de um poder que envolve todos os elementos da vida e perde com isso sua capacidade de mediar diferentes forças sociais.
“O que Foucault implicitamente construiu (e Deleuze e Guattari tornaram explícito) é portanto o paradoxo de um poder que, à medida que unifica e envolve todos os elementos da vida social (perdendo com isso sua capacidade de mediar diferentes forças sociais), nesse exato momento revela um novo contexto, um novo milieu de máxima pluralidade e incontornável singularização – um mileu do evento.” [HARDT & NEGRI, 2001: 44]
Esta é, para Negri e Hardt, a grande novidade da situação imperial. “O poder imperial já não pode resolver o conflito de forças sociais pelo esquema mediador que substitui os termos do conflito. Os conflitos sociais que constituem o político confrontam-se diretamente, sem qualquer espécie de mediação”. [HARDT & NEGRI, 2001: 417] Os autores concluem, então, que o potencial de revolução é maior no Império que nos regimes modernos de poder porque cria uma alternativa à máquina de comando. Esta alternativa é a multidão, o conjunto de todos os explorados e subjugados, que se opõe ao Império sem mediadores.
No livro Cinco lições sobre Império, Negri se propõe a desenvolver aspectos da metodologia de pesquisa que conduziu ao conceito de Império. Um dos campos visados é a distinção entre biopoder e biopolítica e a análise de sua gênese. Este é um dos aspectos em que Negri aproxima Marx e Foucault.
“Fala-se em biopoder quando o Estado expressa comando sobre a vida por meio de suas tecnologias e de seus dispositivos de poder. Contrariamente, fala-se em biopolítica quando a análise crítica do comando é feita do ponto de vista das experiências de subjetivação e de liberdade, isto é, de baixo”. [NEGRI, 2003: 107]
O biopoder, portanto, é a expressão maior da mutação no capitalismo que ocorre hoje, incluindo áreas de desenvolvimento do capital e da sociedade. Porém, é a definição de biopolítica, com a emergência de uma nova subjetividade, que mais interessa sob a ótica da ontologia social.
“Fala-se em biopolítica ou de contexto biopolítico pensando no complexo das resistências e nas ocasiões e nas medidas de choque entre dispositivos sociais de poder”. [NEGRI, 2003: 108]
Negri adverte que é preciso cuidado na utilização destes conceitos, lembrando que eles foram usados na Itália, no começo dos anos 80, em contraposição aos conflitos de classe. Na própria França, após a morte de Foucault, a direita deles se utilizou contra as práticas sociais do Welfare. Os conceitos giram e dão voltas e que é preciso relacioná-los à estrutura de sentido que genealogicamente os conota. Assim, diz Negri, biopolítica deve ser entendida como uma extensão da luta de classe.
Avançando na análise da gênese do biopolítico, Negri o relaciona à idéia de ‘general intellect’, ou ‘intelecto coletivo’ esboçada por Marx nos Grundrisse. ‘General intellect’ é uma antevisão da forma de organização das forças produtivas na fase superior ou final do capitalismo, em que o trabalho passa a ser imaterial (dependente das energias intelectuais e científicas que o constituem) e a força de trabalho se transforma em intelectualidade de massa.
A biopolítica estaria ligada à corporificação do ‘general intellect’, definindo a nova qualidade do trabalho na sociedade pós-industrial. Negri cita o livro de Christian Marazzi, Il posto dei calzini (O lugar das meias), para mostrar que este ‘novo trabalho’ equaciona o paradoxo do chamado não-trabalho das mulheres, que ocupa todos os momentos da vida e é composto por conhecimento, afeto e pelas relações. Deleuze e Guattari também associam o surgimento da biopolítica às características de afetividade, relações, flexibilidade temporal e mobilidade espacial do trabalho que o nosso tempo começa a conhecer.
Negri assinala que os movimentos biopolíticos (resistência), relacionados ao aumento da mobilidade do trabalho e às migrações não são apenas negativos, não querem somente fugir da miséria ou da tirania, mas buscam também a liberdade e o caminho da riqueza, emprego, invenção e da centralidade do trabalho imaterial.
Trabalho imaterial e subjetividade
O conceito de biopolítica está ligado, portanto, à nova caracterização do trabalho produtivo, composto de conhecimento e afeto, dispondo de grande mobilidade geográfica e intersetorial. O operário profissional e o operário-massa das primeiras fases do capitalismo dão lugar agora ao trabalhador imaterial. Recorrendo a uma interpretação positiva do conceito de ‘general intellect’, contido nos Grundrisse, Negri traça o percurso da subjetividade operária plantada no trabalho imaterial e no saber técnico-científico, desde a fase do operário-massa até situar-se agora como hegemonia produtiva no capitalismo imperial, dotada de potência revolucionária.
No artigo Trabalho imaterial e subjetividade, Negri e Lazzarato desenvolvem a tese de que “o ciclo do trabalho imaterial é pré-constituído por uma força de trabalho social e autônoma, capaz de organizar o próprio trabalho e as próprias relações com a empresa” e “nenhuma organização científica do trabalho pode predeterminar esta capacidade e a capacidade produtiva social”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 27] Mesmo a subordinação dos espaços de autonomia e organização do trabalho imaterial às grandes indústrias, no âmbito do modo de produção pós-fordista, não muda, mas reafirma a nova qualidade do trabalho, que tende a tornar-se explicitamente hegemônico. Não somente o trabalho imaterial tende a tornar-se preponderante, mas também a ‘intelectualidade de massa’, ou seja, a força de trabalho da sociedade pós-industrial, pode transformar-se em um sujeito social e politicamente hegemônico.
Como Marx anteviu nos Grundrisse para a fase de maior desenvolvimento da ‘grande indústria’, a criação de riqueza passa a depender cada vez menos do tempo e da quantidade de trabalho isolado imediato na produção e mais da potência de toda a atividade social. Esta potência depende, por sua vez, do progresso da ciência e da tecnologia. O motor da riqueza passa a ser a apropriação da produtividade geral do homem, da sua compreensão e domínio sobre a natureza, através de sua existência como corpo social. Dito pelo próprio Marx, é o desenvolvimento do indivíduo social que se apresenta como o grande pilar de sustentação da produção de riqueza.
"Na medida, entretanto, em que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva se torna menos dependente do tempo de trabalho e do quanto de trabalho empregados, que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que por sua vez - sua poderosa eficácia - não guarda relação alguma com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende bem mais do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação desta ciência à produção. (...) O trabalhador... se apresenta ao lado do processo de produção, em lugar de ser seu agente principal. Nesta transformação o que aparece como pilar fundamental da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato executado pelo homem, nem o tempo que este trabalha, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio da mesma graças à sua existência como corpo social; em uma palavra, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se funda a riqueza atual, aparece como uma base miserável comparado com este fundamento, recém desenvolvido, criado pela grande indústria mesma. Tão pronto como o trabalho em sua forma imediata cessa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem que deixar, de ser sua medida e portanto o valor de troca [deixa de ser a medida] do valor de uso. O mais-trabalho da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos cessa de sê-lo para o desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano. Com isso, desmorona a produção fundada no valor de troca, e ao processo de produção imediato se lhe cancela a forma da necessidade imposta e do antagonismo. Desenvolvimento livre das individualidades, e por isso não redução do tempo de trabalho necessário com vistas a por mais-trabalho, mas em geral redução do trabalho necessário da sociedade a um mínimo, ao qual corresponde então à formação artística, científica, etc., dos indivíduos graças ao tempo que se tornou livre e aos meios criados para todos". [MARX, 1997]
Cabe aqui assinalar que Marx atribui, no processo histórico, a cada coisa, tanto um valor de uso (a utilidade para o seu possuidor) como um valor de troca (a relação de medida entre as coisas ou mercadorias, definida pela quantidade ou tempo de trabalho necessário para a sua produção). O valor de uso, como Negri observa nas Cinco Lições, é algo ‘congênito’ à coisa, enquanto o valor de troca deriva das relações sociopolíticas nos modos de produção. Um exemplo é a força de trabalho, que originalmente era puro valor de uso e depois tornou-se mercadoria, ou seja, valor de troca no mercado.
É interessante, ainda neste ponto, seguir a interpretação de Euclides André Mance no seu texto comparativo dos Grundrisse e O Capital [MANCE, 1997]. Marx descreve um movimento em que o capitalismo vai engendrando a sua própria dissolução. Isso ocorreria da seguinte forma: Graças ao desenvolvimento das forças produtivas, em razão da ciência produzida no tempo de não-trabalho, o tempo de trabalho deixa de ser a medida da riqueza. Esta medida passa a ser o ‘disposable time’, isto é, o tempo livre em que, além de outras coisas, se produz ciência e arte. Mas como manter alguma unidade real de valor para avaliar a mercadoria, se o tempo de trabalho vivo não é mais a sua fonte e se a medida de riqueza passa a ser o ‘disposable time’? Frente a este problema, Marx argumentará que o capitalista – lutando contra a perda de referência do valor – insiste em reduzir as forças sociais criadas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo ao tempo de trabalho gasto na produção da mercadoria. Caberia dizer que é nesse movimento que o capitalismo vai consumindo a si próprio. Voltando aos Grundrisse:
"O capital mesmo é a contradição em processo, [pelo fato de] que tende a reduzir a um mínimo o tempo de trabalho, ao passo que por outro lado põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. Diminui pois o tempo de trabalho na forma de tempo de trabalho necessário, para aumentá-lo na forma do trabalho excedente; põe, portanto, em medida crescente, o trabalho excedente como condição - questão de vida e de morte - do necessário. Por um lado desperta à vida todos os poderes da ciência e da natureza, assim como o da cooperação e do intercâmbio sociais, para fazer que a criação da riqueza seja (relativamente) independente do tempo de trabalho empregado nela. Por outro lado, se propõe medir com o tempo de trabalho essas gigantescas forças sociais criadas de tal sorte a reduzi-las aos limites requeridos para que o valor já criado se conserve como valor. As forças produtivas e as relações sociais... aparecem ao capital unicamente como meios, e não são para ele mais que meios para produzir, fundando-se em sua base mesquinha. De fato, contudo, constituem as condições materiais para fazer saltar essa base pelos ares. ‘Uma nação é verdadeiramente rica quando em vez de 12 horas se trabalham 6. Wealth [riqueza] não é disposição de tempo de mais-trabalho’ (riqueza efetiva), ‘mas disposable time, à parte do tempo usado na produção imediata, para cada indivíduo e toda a sociedade’ [The Source and Remedy, etc., 1821, p. 6]” [MARX, 1997] [11]
Segundo Negri e Lazzarato, estas páginas dos Grundrisse definem a tendência geral de um paradoxo do capital, que é, reduzir a força de trabalho a ‘capital fixo’, subordinando-a sempre mais ao processo produtivo, e, ao mesmo tempo, demonstrar, através desta subordinação total, que o ator fundamental do processo produtivo é ‘o saber social geral’.
“É sobre esta base que a questão da subjetividade pode ser colocada como o faz Marx, isto é, como questão relativa à transformação radical do sujeito na sua relação com a produção. Esta relação não é mais uma relação de simples subordinação ao capital. Ao contrário, esta relação se põe em termos de independência com relação ao tempo de trabalho imposto pelo capital”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 30]
Portanto, quando o controle capitalista se torna totalitário, o empreendimento capitalista vê as suas características constitutivas tornarem-se puramente formais. Os autores de Trabalho imaterial e subjetividade assinalam que o capital “exercita hoje sua função de controle e vigilância do ‘externo’ do processo produtivo, porque o conteúdo do processo pertence sempre mais a outro modo de produção, à cooperação social do trabalho imaterial”. [LAZZRATO & NEGRI: 31] A época em que o processo produtivo dependia do capitalista é superada e o trabalho é que passa a definir o capitalista.
Negri e Lazzarato identificam nas manifestações dos estudantes de 1968, nos movimentos operários que irromperam a partir dessas manifestações e nos movimentos feministas, exemplos de lutas reveladoras da ‘nova composição de classe’ correspondente à centralidade do trabalho imaterial.
“É em torno de maio de 68 que acontece o verdadeiro deslocamento epistemológico. Esta revolução, que não se assemelha a nenhum modelo revolucionário conhecido, produz uma fenomenologia que implica toda uma nova ‘metafísica’ dos poderes e dos sujeitos. Os focos de resistência e de revolta são ‘múltiplos’, ‘heterogêneos’, ‘transversais’ em relação à organização do trabalho e às divisões sociais. A definição da relação com o poder é subordinada à ‘constituição de si’ como sujeito social”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 33]
O artigo Trabalho imaterial e subjetividade também recoloca a questão dos antagonismos na sociedade pós-industrial em termos não-dialéticos. Se o trabalho torna-se imaterial, se a sua hegemonia se manifesta no ‘general intellect’ e se desse processo resultam novos sujeitos sociais independentes e autônomos, a contradição entre esta nova subjetividade e o domínio capitalista deixa de ser dialética e passa a ser alternativa.
“Quando dizemos que essa nova força de trabalho não pode ser definida no interior de uma relação dialética, queremos dizer que a relação que esta tem com o capital não é somente antagonista, ela está além do antagonismo, é alternativa, constitutiva de uma realidade social diferente. (...) O velho antagonismo das sociedades industriais estabelecia uma relação contínua, mesmo se de oposição, entre os sujeitos antagonistas e, como conseqüência, imaginava a passagem de uma situação de poder dada àquela da vitória das forças antagonistas como uma ‘transição’. Nas sociedades pós-industriais, onde o ‘general intellect’ é hegemônico, não há mais lugar para o conceito de ‘transição’, mas somente para o conceito de ‘poder constituinte’ como expressão radical do novo. A constituição antagonista, portanto, não se determina mais a partir dos dados da relação capitalista, mas da ruptura com ela; não a partir do trabalho assalariado, mas da sua dissolução; não sob as bases da figura do trabalho, mas daquelas do não-trabalho”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 36]
É nesse sentido que Negri e Lazzarato afirmam que a emergência do trabalho imaterial e a mudança subjetiva conseqüente modificam o próprio conceito de revolução. Não se perdem as características de ruptura radical, mas esta ruptura fica subordinada às novas regras de constituição ontológica dos sujeitos, à sua potência.
Nas Cinco lições sobre Império, Negri aprofunda o tema da potência revolucionária da emergência do trabalho imaterial. Ele diz que as transformações que ocorrem hoje no trabalho constituem a esperada novidade radical, o evento de nossa época. É a capacidade de conhecer que nos permite hoje ter acesso à produção e, por meio dela, à reprodução do ser social. Negri observa que é preciso, portanto, desenvolver uma ‘ontologia do trabalho imaterial’ ou uma ‘ontologia do ser imaterial’. Ele assinala que estamos assistindo ao ‘fim da dialética do instrumento’, entendendo-se por ‘instrumentalização’ o fato de que o capital oferecia o instrumento ao trabalhador. Agora o instrumento é o próprio cérebro humano.
“Quando o cérebro humano se reapropria do instrumento de trabalho, então o capital não tem mais a possibilidade de articular o comando sobre o instrumento: e portanto a dialética instrumental se exaure”. [NEGRI, 2003: 95]
Quando se fala que esta nova qualidade do trabalho é reafirmada apesar da subordinação de seus espaços de autonomia e cooperação ao capitalismo contemporâneo, deve-se entender que a continuidade da exploração e mesmo o seu agravamento – com o retorno no pós-fordismo de práticas de exploração pré-fordistas – não deve obscurecer a compreensão da descontinuidade das formas de organização e comando do grande capital no âmbito do trabalho imaterial.
No ensaio Trabalho autônomo, produção por meio da linguagem e General Intellect, [LAZZARATO, 2001] Maurizio Lazzarato procura estabelecer uma relação de complementaridade, em torno da noção de trabalho imaterial, entre diversas contribuições no âmbito do pensamento ‘operaísta’ e da autonomia italiana. Uma destas teses refere-se ao ‘trabalho autônomo de terceira geração’, de Sergio Bologna, que destaca aspectos sociológicos, econômicos e financeiros do trabalho na era pós-fordista. Analisa, no contexto do pós-fordismo, as empresas individuais, o trabalho autônomo consorciado (cooperativo), o ‘artesanato’, o ‘self-employment’, as pequenas empresas que prestam serviços para grandes empresas e outros fenômenos correlatos. Assinala, também, o prolongamento da jornada de trabalho, a degradação das condições laborais e a composição da renda segundo condições pré-fordistas.
Parece, segundo Lazzarato, que a preocupação de Bologna é salientar que, frente ao lado liberatório e inovativo destacado pelas teorizações do ‘general intellect’, também existe um lado obscuro e trágico. O pós-fordismo não é apenas ‘produção de mercadorias por meio da linguagem’, intelectualidade de massa e comunicação, mas também o retorno a forma de exploração pré-fordistas. Trabalha-se mais, em piores condições de trabalho e sem garantias trabalhistas. Os trabalhadores autônomos são mais explorados que os operários fordistas.
Lazzarato observa que a exaltação deste aspecto ‘material’ da exploração pós-fordista traz o risco de passar para segundo plano a qualificação geral da relação social pós-fordista e do trabalho, do qual o ‘trabalho autônomo’ é apenas uma parte. “A continuidade da exploração não deve nos impedir de apreender a descontinuidade de suas formas de organização e de comando”. [LAZZARATO, 2001: 93] Entre o trabalho autônomo da época pré-fordista e o atual há uma socialização-intensificação da cooperação, dos saberes, das subjetividades dos trabalhadores e dos dispositivos tecnológicos e organizativos que redeterminam os termos da questão.
A nova ‘autonomização’ não tem relação com aquela contra a qual o ‘taylorismo’ se constituiu. Agora, o trabalho autônomo possui grande capacidade de cooperação, gestão e inovação oraganizativa e comercial, o que se traduz em capacidade empreendedora. Além disso, ele existe somente sob a forma de redes e fluxos. A sua espacilidade é o território e a metrópole; sua temporalidade coincide com o tempo de vida. É impossível defini-lo fora da dimensão coletiva e da vida. Enfim, ele é dotado de capacidades biopolíticas, no conceito foucaultiano, ou seja, é capaz de abrir alternativas políticas.
Ainda segundo Lazzarato, quando Bologna trata do trabalho que ‘produz serviços para as empresas’, o significado da nova ‘autonomização’ fica ainda mais clara. Ela não é organizada somente para reduzir custos e flexibilizar a produção, mas fundamentalmente para capturar as ‘externalidades’ positivas que a cooperação produz e organiza espontaneamente.
Hoje, a autonomia do trabalho não é somente intensificação da exploração. É, sobretudo, a intensificação dos níveis de cooperação, saber e comunidade, que esvazia e deslegitima o comando do empreendedor capitalista e do Estado. Lazzarato deduz das conclusões de Bologna que “o capitalismo sempre foi uma coexistência de diversos modos de produção, comandados, organizados e explorados pelo mais desterritorializado (abstrato, segundo a definição marxista) dentre eles”. [LAZZARATO, 2001: 95] É o que ocorre no modo de produção pós-fordista, que compreende também formas de trabalho servil e pré-capitalista. Mas são exatamente os elementos mais desterritorializados (abstratos) da nova natureza do trabalho que capturam todos os outros.
Surge, então, a figura do ‘empreendedor político’, que se diferencia do empreendedor shumpeteriano. A capacidade do ‘empreendedor político’ não consiste apenas na exploração de uma tecnologia, do comércio ou do trabalho. Sua qualificação é conseguir colocar em seqüência os segmentos de trabalho que não estão em continuidade, recuperando assim as externalidades produzidas pela cooperação produtiva e pela comunidade.
Lazzarato conclui que o modo de produção pós-fordista não pode ser definido apenas como ‘produção flexível’, aumento da jornada e difusão territorial do trabalho, entre outras características. É, sobretudo, a ativação de diferentes modos de produção, materiais e imateriais, com a convivência, portanto, de diferentes subjetividades (pré-fordista e pós-fordista). Tudo isso é comandado, porém, pelas formas mais abstratas e dinâmicas do trabalho e da subjetividade. “Como sempre, não é o peso quantitativo de um modo de produção ou de uma relação social, mas a sua posição estratégica e tendencial na divisão internacional do trabalho, que define o dinamismo e a hegemonia dela”. [LAZZARATO, 2001: 106] É assim, segundo Lazzarato, que o ‘biopolítico’ pode impactar a tendência do desenvolvimento do capitalismo e, também, ‘exprimir’ a multiplicidade das formas de vida, produção e subjetividade do proletariado mundial.
Multidão e poder constituinte
Negri e Hardt identificam no Império, como vimos, um potencial maior de revolução que outros regimes porque apresenta a alternativa da multidão, o conjunto de todos os explorados e subjugados, o proletariado mundial, que constitui alternativa à máquina de comando capitalista.
A gênese do conceito de multidão é examinada nas Cinco lições, em particular na terceira delas, que trata dos sujeitos políticos. Negri lembra que Espinosa define multidão como uma multiplicidade de singularidades que se situam em alguma ordem. Antes, o conceito estava relacionado a uma falta de ordem; a multidão era apresentada como multiplicidade de sujeitos sem princípio formativo, uma matéria a ser formada. Com Espinosa, “o conceito de multidão assume sentido próprio na medida em que falta uma idéia de causalidade externa”. [NEGRI, 2003: 139]
Negri parte em seguida para estabelecer a diferenciação entre os conceitos de multidão e de povo. Ele recorre a Maquiavel para identificar na Renascença italiana as origens do pensamento republicano e de novo a Espinosa, na segunda metade do século 17, em pleno esplendor do absolutismo monárquico, para encontrar a emergência de um pensamento subvertor que leva ao conceito de absolutismo da multidão associado ao absolutismo da democracia. “A idéia de multidão e a de democracia absoluta tornar-se-ão um único projeto no pensamento republicano”. [NEGRI, 2003: 141]
O passo seguinte é a definição política de subjetividade como produto de um conjunto de relações. Novamente, Negri vai a Espinosa e depois a Nietzsche, Deleuze e Foucault. A definição de sujeito deixa de repousar em elementos metafísicos. Para o trabalho da multidão, entendida como produto de singularidades, qualquer elemento de autoconsciência é secundário. As singularidades mantêm força própria, mas há uma dinâmica relacional, que as constrói e, ao mesmo tempo, constrói o todo.
Negri observa que a corrente republicana do pensamento moderno não reconhece a centralidade do individualismo apropriador. É Hobbes que o coloca no centro do processo constitutivo da modernidade, pensando os indivíduos como seres egoístas e apropriadores. Somente o contrato poderia assegurar o equilíbrio social e evitar a guerra permanente. Mas o contrato consiste em translação, ou seja, alienação do poder dos indivíduos para um poder transcendente, soberano, capaz de assegurar paz e segurança aos indivíduos e à propriedade.
O conceito de povo aparece na modernidade como uma produção do Estado. Povo, neste sentido, é o conjunto de indivíduos que abdicam de sua liberdade tendo como compensação a garantia da propriedade. A liberdade torna-se um direito público, subjetivo, e é o Estado que a garante. “Esse conceito de Estado, de povo e dos direitos que seguem perdurou até hoje, exatamente como a idéia de soberania”. [NEGRI, 2003: 143-144]
Na última fase da modernidade, as definições de multidão resultaram quase sempre da impossibilidade de conformá-la no conceito de povo. A complexidade da estrutura de classe do capitalismo impôs a idéia de multidão como massa, um conjunto confuso e indistinto, embora capaz de uma força de resistência.
Na era pós-moderna, o conceito de multidão remete a uma multiplicidade de subjetividades, ou singularidades. Pode-se falar em multidão como classe social não-operária, a força de trabalho do modo de produção em que o trabalho imaterial é hegemônico. Assim, a força de trabalho torna-se capaz de acabar com a dialética da servidão e da soberania por meio da reapropriação dos instrumentos de trabalho e da cooperação. Quando o conceito de multidão é confrontado com as novas formas de organização do trabalho e da sociedade – e não simplesmente em termos políticos, como ocorria nas correntes republicanas entre os séculos 16 e 18 – passa a ser reconstruído como “indicador material, ontológico, de uma nova fase do desenvolvimento do capitalismo, da sociedade e – o que mais importa – da subjetividade”. [NEGRI, 2003: 144-145]
Negri chega, então, à questão da forma política da expressão da multidão, uma forma que não seja de alienação de sua potência produtiva nem da liberdade dos sujeitos. Superar a alienação – característica marcante da modernidade – pressupõe superar também a representação, com a translação da potência do indivíduo ao soberano moderno (Estado) associada à idéia de consenso como metáfora desse processo.
Nesse ponto, ele analisa o conceito de comum e o diferencia das idéias de identidade ou consenso. Assinala que multidão não é encontro da identidade nem exaltação da diferença, mas é o reconhecimento de que pode existir ‘algo comum’ além das identidades e diferenças. Esta é outra novidade em relação às teorias políticas tradicionais. Multidão é um conjunto de singularidades, em que ‘conjunto’ é uma comunidade de diferenças e ‘singularidade’ é produção de diferença.
Resta compreender a definição de multidão como conceito forte. Negri parte da distinção entre obstáculo e limite. Temos obstáculo quando há alguma coisa fora que nos impede de ir além. Limite é algo totalmente negativo, que impede qualquer atividade. A multidão se subestima, percebendo-se apenas como obstáculo e não como limite insuperável da soberania; quando entende que pode se expressar somente pela destruição do soberano, o inimigo. Nas teorias democrático-radicais e na concepção tradicional do comunismo, o obstáculo é algo a ser destruído, por ser sempre demasiado forte. Instaurar a ditadura do proletariado é uma saída modesta, segundo Negri, porque se trata ainda de uma imagem do Estado, embora invertida.
O problema, portanto, é tornar indestrutível a força da multidão. Deve-se entendê-la negativamente como limite da soberania; assim, ela se apresenta positivamente como um conjunto de singularidades que se relaciona sempre a um obstáculo. A multidão não precisa de ditadura e da legitimidade de um Estado invertido para começar o processo revolucionário. Observando que o limite da soberania está na relação entre quem comanda e quem obedece, Negri conclui que “o poder da multidão não consiste tanto na possibilidade de destruir essa relação, mas de esvaziá-la, de eliminá-la, de fazê-la desaparecer por meio de uma negação radical”. [NEGRI, 2003: 154] Ele abre caminho para uma ontologia da multidão, assinalando que a relação se apresenta à soberania primeiro como obstáculo e depois como limite, que ela não pode eliminar, porque a constitui. A potência da multidão, ao contrário, pode eliminar a relação soberana, porque a produção da multidão constitui o ser.
Reconhecer que a multidão é limite da soberania e não simplesmente obstáculo a ela significa reconhecer também sua potência constituinte. Por estar a multidão totalmente implantada no novo paradigma produtivo – com a hegemonia do trabalho imaterial e cooperativo – o comum que a caracteriza é produtivo e constituinte. Segundo Negri, o poder constituinte é a efetividade da luta, a potência da multidão que inventa e constitui novas realidades. “Se, de fato, multidão é um conjunto de singularidades agentes, a potência constituinte somente poderá ser a ação do telos comum da multidão. O poder constituinte é a dinâmica organizacional da multidão, o seu fazer-se”. [NEGRI, 2003: 157]