2 – Periodização do capitalismo
Os ecos dos conceitos desenvolvidos em Império reverberam com intensidade no âmbito do pensamento crítico. Uma das discussões refere-se à proposta de periodização do capitalismo e ‘seus modos de regulação’. Como assegurar que o imperialismo deu lugar ao Império? Como atestar a superação do Estado-nação, se os Estados Unidos se impõem como potência hegemônica? Ao problematizar a proposta de periodização de Negri e Hardt, o professor argentino Nestor Kohan [KOHAN, 2002] diz que Império tenta dar alcance universal e homologar três processos diferentes ao mesmo tempo – passagem do imperialismo ao Império, da modernidade à pós-modernidade e do fordismo ao pós-fordismo – adotando uma ótica estritamente eurocêntrica e usando como parâmetro exclusivo as lutas da chamada autonomia italiana, uma experiência provinciana, restrita ao norte da Itália entre os anos 60 e 70, na qual Negri se envolveu pessoalmente.
Todo um capítulo das Cinco lições – a ‘Lição 1’ – é dedicado à discussão metodológica da periodização, procurando repensar o tema da causalidade histórica a partir de Marx, em especial a função teleológica como relação determinista.
Retomando os conceitos de capital e capitalismo como categorias de uma relação entre quem comanda e quem obedece, quem subordina e quem é subordinado, Negri propõe que a globalização não é uma expansão linear de mercado que varre o Estado-nação e impõe o Império. É o Estado-nação que se torna incapaz de controlar a relação de capital.
A soberania, entendida como comando da relação de forças que constitui o capital, estava no Estado-nação durante a modernidade. Mas agora, no pós-moderno, a soberania está em outro lugar, provavelmente no Império, segundo Negri. Ele aponta uma sucessão de acontecimentos, a partir do ano de 1968, que definiram essa ruptura: a falência da paridade fixa do dólar, a primeira crise do petróleo e o tratado de paz nuclear, que ocorreram entre 1971 e 1972. Fica explícita, a partir daí, a impossibilidade de se garantir o desenvolvimento capitalista por meio dos instrumentos da regulação soberana interna ao espaço-nação.
Isso ocorre simultaneamente ao fim da fase imperialista do desenvolvimento do capitalismo, entendendo-se por imperialismo o processo expansionista do poder do Estado-nação mediante ocupação de áreas de influência. Também se verifica, um pouco depois, o desmoronamento do regime soviético.
Segundo Negri, são as lutas antiimperialistas e anticoloniais e, também, os movimentos pela liberdade no contexto do ‘socialismo real’ que provocam o esvaziamento do Estado-nação como garantia soberana do desenvolvimento capitalista. É este conjunto de lutas que impõe a constituição do Império, o não-lugar onde passa se concentrar a soberania que assegura o desenvolvimento capitalista no cenário da globalização.
Essa metodologia – que assume as lutas do proletariado como motor do desenvolvimento – vem, segundo Negri, do ‘operaismo italiano’, do marxismo renovado que, desde o final dos anos 50 até a crise definitiva do movimento comunista internacional, constrói a categoria ‘autonomia da classe operária’. Ele dá o mérito a Mario Tronti de ter formalizado em Operai e capitale as hipóteses teóricas que permitiram pensar numa espontaneidade nos movimentos de classe que se opunha ao determinismo causal clássico marxista. Esse rompimento do mecanicismo teleológico permitiu considerar os movimentos de capital como movimentos sociais ou eventos de ruptura. A revolução deixou de ser um prazo objetivo, o limite para o qual se inclinavam os fatores materiais que a taxa de lucro criava, mas a acumulação de processos subjetivos de massa, um evento.
No mesmo período, na França, alguns autores no âmbito estruturalista e pós-estruturalista, notadamente Foucault e Deleuze, chegaram a conclusões semelhantes na crítica da causalidade determinista. Isso também é corroborado, segundo Negri, por correntes de pensamento nos Estados Unidos e na América Latina, da mesma forma que pelos estudos subalternos, os ‘Subaltern Studies’, da escola indiana de Rabajit Guha, que se dissemiram no mundo anglo-saxão.
O problema da causalidade histórica conduz, segundo Negri, a uma discussão sobre o sujeito. Ele fala de uma subjetividade que deve ser percebida não mais em termos negativos, e sim constitutivos. Propõe, para isso, uma leitura do processo histórico em termos de descontinuidade, nunca como um processo linear e determinista. Assim, se o Império existe, é porque uma série de relações de forças singulares se determinaram, assim como eventos imprevisíveis se realizaram. Do ponto de vista da análise causal, o desenvolvimento histórico não é pré-imaginável de nenhuma maneira, mas depende sempre das ações dos sujeitos dentro do processo. E esta ação – se for reportada à autonomia da classe operária – resulta sempre em uma ação desmedida, no sentido de ‘fora da medida’ e ‘além da medida’.
A questão da ‘medida’ remete a outro aspecto da metodologia adotada por Negri. Embora confirme o ‘trabalho’ como centro de qualquer processo produtivo e de luta, esta metodologia retira do conceito de valor o caráter de explicação causal do percurso histórico. Trata-se da desvinculação do trabalho dos critérios de medida adotados na economia clássica, de Smith a Marx. Para Negri, é preciso pensar as transformações reais que ficam por trás dos processos de valorização. A própria ‘lei do valor’ se relaciona a uma fase específica da organização do trabalho, que podia ser medido por unidade de tempo trabalhado. Hoje, a valorização ocorre de modo diferente, através da socialização do trabalho. É nesse novo período que a causalidade histórica deve ser definida.
Na medida em que a sociedade é subsumida pelo capital, diz Negri, toda relação social se torna, em algum sentido, uma relação produtiva. Neste momento, as relações de soberania e de capital se tornam passíveis de sobreposição. O centro da exploração se desloca diretamente para o social. A crise da lei do valor e, portanto, a desmedida da relação de exploração, a expropriação que ocorre em qualquer nexo social e em particular sobre a cooperação, introduz o imediatismo do comando. O comando não é mais algo que se acrescenta de fora ao processo de exploração, mas algo que o organiza.
Para definir os períodos do desenvolvimento capitalista, Negri propõe a observação de um conjunto de transformações que qualificam o sujeito proletário (sua composição técnica e política) nas diversas formas de organização do trabalho e da sociedade:
- os processos laborais e suas modificações- as normas de consumo e de reprodução social- os modelos de regulação econômica e política- a composição política de classe.
Ele analisa dois períodos característicos da ‘grande indústria’. O primeiro, que Marx estudou mais, vai até o início dos anos 20, quanto ocorre a ruptura do ‘operaismo’ em relação ao Estado-nação com a Primeira Guerra Mundial, a Revolução bolchevista e o ciclo de lutas que se segue. O segundo período da ‘grande indústria’ vai, segundo Negri, até 1968. Ele assume esta data simbólica como ponto de chegada de alguns elementos radicais de novidade:
- Nova forma de trabalhar: com a automação da produção e a informatização social, o trabalho material imediatamente produtivo perde a sua centralidade e emerge a figura do ‘operário social’ como intérprete das funções de cooperação laboral veiculadas pelas redes produtivas sociais.- Novas normas de consumo: passam a se expressar em formas de individualismo, que persegue a difusão e a singularização sociais do desenvolvimento produtivo.- Novo modelo de regulação: situa-se ao redor de linhas multinacionais, passando primeiro através de dimensões monetárias e, depois, através da função político-imperial.- Nova composição do proletariado: torna-se social, cada vez mais imaterial do ponto de vista da substância do trabalho; é móvel, multiforme e flexível do ponto de vista de suas formas.
Neste ponto, Negri assinala que a validação deste método e a confirmação do esquema de relação causal da gênese do Império e de sua ordem interna significa que estamos vivendo hoje uma situação muito crítica, em que as categorias de trabalho, capital, Estado, direito, nação e, portanto, de sociedade internacional, entre outras, que o moderno no legou, estão provavelmente obsoletas.
“Todavia, se precisamos começar a nos movimentar em outras determinações conceituais, isso quer dizer que estamos diante de um salto qualitativo, no qual os motores e os processo que até agora sustentaram nosso raciocínio sobre os motivos e a transformação das épocas capitalistas estão, eles mesmos, de alguma maneira, em discussão. Isto é, o fato de que haja um evento como a constituição de um comando mundial significa que existe um salto na explicação científica, que modifica tudo e nos obriga a reconsiderar as categorias com as quais trabalhamos até o presente momento, e a considerar as categorias passadas destinadas ao desuso”. [NEGRI, 2003: 68]
Quando fala de ‘passagem do moderno ao pós-moderno’, Negri enfatiza o fim das categorias do moderno. Insiste em uma concepção de causas históricas que tem na dinâmica das lutas a razão da transformação da realidade, da ruptura conceitual e, também, requer o surgimento de um novo léxico.
Ao defender a metodologia que assume as lutas proletárias como motor social, Negri reitera que o ‘operaismo’ italiano enfrentou eficazmente o problema da causalidade marxista como relação determinista. Contribuiu, assim, para um novo método da causalidade histórica que exclui interpretações deterministas sub-reptícias. Continuidade e da descontinuidade do tempo marxista passam a ser consideradas em um horizonte ‘intempestivo’. Abrem-se, assim, outras possibilidades de análise. Entendida de forma descontínua, a temporalidade capitalista torna-se constitutiva, enquanto a intempestividade remete à subjetividade. “Na descontinuidade do tempo produtivo determina-se assim uma passagem ontológica, ser constituído é sempre e novamente ser constituinte...”. [NEGRI, 2003: 71]
As análises que pretendem livrar o pensamento marxista dos vínculos deterministas levam a um deslocamento do objetivo ao subjetivo, ‘a uma definição de causa como se fosse enervada por atos constitutivos’. [NEGRI, 2003: 71] Trata-se de uma causação ontológica. A desmistificação que Tronti propôs da relação capitalista, tornando-a relação intersubjetiva (o capital como relação, operários e capital como opostos), passa a desenvolver-se em uma dimensão constitutiva, tornando plausível a rearticulação de uma teoria da causação histórica. Negri conclui:
“Naturalmente, no que concerne aos problemas de periodização, precisamos ter presentes os mesmos pressupostos. Dos dois caminhos que seguimos, um está conectado com a transformação das categorias do trabalho, e se poderia definir assim: da acumulação originária à hegemonia do imaterial; o outro assume a relação entre categorias do trabalho e categorias do Estado, e se poderia definir assim: a superação imperial do Estado-nação. Na base de ambos esses pontos de vista, está a conscientização da transição do moderno ao pós-moderno”. [NEGRI, 2003: 71-72]
Resta, no entanto, refletir sobre o papel dos Estados Unidos na sociedade global do presente. Se o Estado-nação tornou-se incapaz de controlar a relação de capital e se o Império é a resposta à impossibilidade de garantir o desenvolvimento capitalista por meio da regulação interna ao espaço nacional, como fica a questão da hegemonia norte-americana, que se impõe em todos os lugares e em todos os âmbitos, da cultura à economia, da política à força militar?
Na contra-corrente das principais linhas do pensamento político contemporâneo, Negri e Hardt sustentam em Império que os Estados Unidos e nenhuma outra potência podem ser o centro de um novo projeto imperialista. Ao reanalisar esta afirmação à luz das intervenções militares que se sucederam à publicação (2000) do livro e ao 11 de setembro de 2001, Negri reitera que a soberania imperial não tem como objetivo a assimilação político-territorial de países e povos, como era típico do imperialismo e do colonialismo. Reafirma também que o comando imperial quer garantir – por aparatos políticos, jurídicos e militares – a ordem global e uma paz estável que permitam o funcionamento do mercado. Ele assinala, ainda, que não se deve confundir os Estados Unidos e a ideologia e a prática ‘imperialista’ do governo Bush com o governo do Império. Pelo contrário, esse movimento atual do poderio norte-americano estaria em rota de colisão com as forças capitalistas que constituem o Império.
O antiamericanismo confunde o povo americano com o estado americano e não dá conta de que os Estados Unidos estão inseridos no mercado mundial como os outros países e que a política de Bush é minoritária no âmbito do capitalismo multinacional. O antiamericanismo seria, assim, “um estado de espírito perigoso, uma ideologia que mistifica os dados da análise e cobre a responsabilidade do capital coletivo” [NEGRI, 2003: 31]. Negri acrescenta que a liderança dos Estados Unidos está, na verdade, enfraquecida justamente por suas tendências imperialistas. E cita duas boas notícias em meio aos terrores e temores do presente: o superpoder militar americano está em parte neutralizado pela impossibilidade de usar o potencial nuclear, enquanto do ponto de vista monetário, o país está cada vez mais exposto e vulnerável nos mercados financeiros. Negri aposta na probabilidade de que os Estados Unidos serão logo obrigados a reconhecer o Império.
Também cabe referência aqui a algo que vem se delineando com crescente velocidade e maior nitidez no campo da resistência. Talvez possa ser outra notícia positiva. Trata-se de acontecimentos protagonizados pelo que se denomina ‘nova sociedade civil global’, que utiliza meios tecnológicos (como a Internet e telefones celulares) para se manifestar e existir independentemente das instituições políticas e do sistema midiático. Além dos incontáveis exemplos locais, nacionais e regionais, destacam-se eventos de impacto mundial como as manifestações pela paz em fevereiro de 2003 e a derrota eleitoral do primeiro-ministro José María Aznar na Espanha depois dos atentados terroristas em março de 2004. Aquelas manifestações e a virada nos rumos da eleição espanhola são acontecimentos deflagrados de forma muito rápida, quase instantânea, autônoma, independente de um comando central de controle, constituindo um espaço público desterritorializado de organização, diálogo e decisões coletivas. O poder dessa ‘nova sociedade civil’ é evidente, como também é a corrida do mercado para cooptá-la e do poder imperial para constitucionalizá-la.
Todo um capítulo das Cinco lições – a ‘Lição 1’ – é dedicado à discussão metodológica da periodização, procurando repensar o tema da causalidade histórica a partir de Marx, em especial a função teleológica como relação determinista.
Retomando os conceitos de capital e capitalismo como categorias de uma relação entre quem comanda e quem obedece, quem subordina e quem é subordinado, Negri propõe que a globalização não é uma expansão linear de mercado que varre o Estado-nação e impõe o Império. É o Estado-nação que se torna incapaz de controlar a relação de capital.
A soberania, entendida como comando da relação de forças que constitui o capital, estava no Estado-nação durante a modernidade. Mas agora, no pós-moderno, a soberania está em outro lugar, provavelmente no Império, segundo Negri. Ele aponta uma sucessão de acontecimentos, a partir do ano de 1968, que definiram essa ruptura: a falência da paridade fixa do dólar, a primeira crise do petróleo e o tratado de paz nuclear, que ocorreram entre 1971 e 1972. Fica explícita, a partir daí, a impossibilidade de se garantir o desenvolvimento capitalista por meio dos instrumentos da regulação soberana interna ao espaço-nação.
Isso ocorre simultaneamente ao fim da fase imperialista do desenvolvimento do capitalismo, entendendo-se por imperialismo o processo expansionista do poder do Estado-nação mediante ocupação de áreas de influência. Também se verifica, um pouco depois, o desmoronamento do regime soviético.
Segundo Negri, são as lutas antiimperialistas e anticoloniais e, também, os movimentos pela liberdade no contexto do ‘socialismo real’ que provocam o esvaziamento do Estado-nação como garantia soberana do desenvolvimento capitalista. É este conjunto de lutas que impõe a constituição do Império, o não-lugar onde passa se concentrar a soberania que assegura o desenvolvimento capitalista no cenário da globalização.
Essa metodologia – que assume as lutas do proletariado como motor do desenvolvimento – vem, segundo Negri, do ‘operaismo italiano’, do marxismo renovado que, desde o final dos anos 50 até a crise definitiva do movimento comunista internacional, constrói a categoria ‘autonomia da classe operária’. Ele dá o mérito a Mario Tronti de ter formalizado em Operai e capitale as hipóteses teóricas que permitiram pensar numa espontaneidade nos movimentos de classe que se opunha ao determinismo causal clássico marxista. Esse rompimento do mecanicismo teleológico permitiu considerar os movimentos de capital como movimentos sociais ou eventos de ruptura. A revolução deixou de ser um prazo objetivo, o limite para o qual se inclinavam os fatores materiais que a taxa de lucro criava, mas a acumulação de processos subjetivos de massa, um evento.
No mesmo período, na França, alguns autores no âmbito estruturalista e pós-estruturalista, notadamente Foucault e Deleuze, chegaram a conclusões semelhantes na crítica da causalidade determinista. Isso também é corroborado, segundo Negri, por correntes de pensamento nos Estados Unidos e na América Latina, da mesma forma que pelos estudos subalternos, os ‘Subaltern Studies’, da escola indiana de Rabajit Guha, que se dissemiram no mundo anglo-saxão.
O problema da causalidade histórica conduz, segundo Negri, a uma discussão sobre o sujeito. Ele fala de uma subjetividade que deve ser percebida não mais em termos negativos, e sim constitutivos. Propõe, para isso, uma leitura do processo histórico em termos de descontinuidade, nunca como um processo linear e determinista. Assim, se o Império existe, é porque uma série de relações de forças singulares se determinaram, assim como eventos imprevisíveis se realizaram. Do ponto de vista da análise causal, o desenvolvimento histórico não é pré-imaginável de nenhuma maneira, mas depende sempre das ações dos sujeitos dentro do processo. E esta ação – se for reportada à autonomia da classe operária – resulta sempre em uma ação desmedida, no sentido de ‘fora da medida’ e ‘além da medida’.
A questão da ‘medida’ remete a outro aspecto da metodologia adotada por Negri. Embora confirme o ‘trabalho’ como centro de qualquer processo produtivo e de luta, esta metodologia retira do conceito de valor o caráter de explicação causal do percurso histórico. Trata-se da desvinculação do trabalho dos critérios de medida adotados na economia clássica, de Smith a Marx. Para Negri, é preciso pensar as transformações reais que ficam por trás dos processos de valorização. A própria ‘lei do valor’ se relaciona a uma fase específica da organização do trabalho, que podia ser medido por unidade de tempo trabalhado. Hoje, a valorização ocorre de modo diferente, através da socialização do trabalho. É nesse novo período que a causalidade histórica deve ser definida.
Na medida em que a sociedade é subsumida pelo capital, diz Negri, toda relação social se torna, em algum sentido, uma relação produtiva. Neste momento, as relações de soberania e de capital se tornam passíveis de sobreposição. O centro da exploração se desloca diretamente para o social. A crise da lei do valor e, portanto, a desmedida da relação de exploração, a expropriação que ocorre em qualquer nexo social e em particular sobre a cooperação, introduz o imediatismo do comando. O comando não é mais algo que se acrescenta de fora ao processo de exploração, mas algo que o organiza.
Para definir os períodos do desenvolvimento capitalista, Negri propõe a observação de um conjunto de transformações que qualificam o sujeito proletário (sua composição técnica e política) nas diversas formas de organização do trabalho e da sociedade:
- os processos laborais e suas modificações- as normas de consumo e de reprodução social- os modelos de regulação econômica e política- a composição política de classe.
Ele analisa dois períodos característicos da ‘grande indústria’. O primeiro, que Marx estudou mais, vai até o início dos anos 20, quanto ocorre a ruptura do ‘operaismo’ em relação ao Estado-nação com a Primeira Guerra Mundial, a Revolução bolchevista e o ciclo de lutas que se segue. O segundo período da ‘grande indústria’ vai, segundo Negri, até 1968. Ele assume esta data simbólica como ponto de chegada de alguns elementos radicais de novidade:
- Nova forma de trabalhar: com a automação da produção e a informatização social, o trabalho material imediatamente produtivo perde a sua centralidade e emerge a figura do ‘operário social’ como intérprete das funções de cooperação laboral veiculadas pelas redes produtivas sociais.- Novas normas de consumo: passam a se expressar em formas de individualismo, que persegue a difusão e a singularização sociais do desenvolvimento produtivo.- Novo modelo de regulação: situa-se ao redor de linhas multinacionais, passando primeiro através de dimensões monetárias e, depois, através da função político-imperial.- Nova composição do proletariado: torna-se social, cada vez mais imaterial do ponto de vista da substância do trabalho; é móvel, multiforme e flexível do ponto de vista de suas formas.
Neste ponto, Negri assinala que a validação deste método e a confirmação do esquema de relação causal da gênese do Império e de sua ordem interna significa que estamos vivendo hoje uma situação muito crítica, em que as categorias de trabalho, capital, Estado, direito, nação e, portanto, de sociedade internacional, entre outras, que o moderno no legou, estão provavelmente obsoletas.
“Todavia, se precisamos começar a nos movimentar em outras determinações conceituais, isso quer dizer que estamos diante de um salto qualitativo, no qual os motores e os processo que até agora sustentaram nosso raciocínio sobre os motivos e a transformação das épocas capitalistas estão, eles mesmos, de alguma maneira, em discussão. Isto é, o fato de que haja um evento como a constituição de um comando mundial significa que existe um salto na explicação científica, que modifica tudo e nos obriga a reconsiderar as categorias com as quais trabalhamos até o presente momento, e a considerar as categorias passadas destinadas ao desuso”. [NEGRI, 2003: 68]
Quando fala de ‘passagem do moderno ao pós-moderno’, Negri enfatiza o fim das categorias do moderno. Insiste em uma concepção de causas históricas que tem na dinâmica das lutas a razão da transformação da realidade, da ruptura conceitual e, também, requer o surgimento de um novo léxico.
Ao defender a metodologia que assume as lutas proletárias como motor social, Negri reitera que o ‘operaismo’ italiano enfrentou eficazmente o problema da causalidade marxista como relação determinista. Contribuiu, assim, para um novo método da causalidade histórica que exclui interpretações deterministas sub-reptícias. Continuidade e da descontinuidade do tempo marxista passam a ser consideradas em um horizonte ‘intempestivo’. Abrem-se, assim, outras possibilidades de análise. Entendida de forma descontínua, a temporalidade capitalista torna-se constitutiva, enquanto a intempestividade remete à subjetividade. “Na descontinuidade do tempo produtivo determina-se assim uma passagem ontológica, ser constituído é sempre e novamente ser constituinte...”. [NEGRI, 2003: 71]
As análises que pretendem livrar o pensamento marxista dos vínculos deterministas levam a um deslocamento do objetivo ao subjetivo, ‘a uma definição de causa como se fosse enervada por atos constitutivos’. [NEGRI, 2003: 71] Trata-se de uma causação ontológica. A desmistificação que Tronti propôs da relação capitalista, tornando-a relação intersubjetiva (o capital como relação, operários e capital como opostos), passa a desenvolver-se em uma dimensão constitutiva, tornando plausível a rearticulação de uma teoria da causação histórica. Negri conclui:
“Naturalmente, no que concerne aos problemas de periodização, precisamos ter presentes os mesmos pressupostos. Dos dois caminhos que seguimos, um está conectado com a transformação das categorias do trabalho, e se poderia definir assim: da acumulação originária à hegemonia do imaterial; o outro assume a relação entre categorias do trabalho e categorias do Estado, e se poderia definir assim: a superação imperial do Estado-nação. Na base de ambos esses pontos de vista, está a conscientização da transição do moderno ao pós-moderno”. [NEGRI, 2003: 71-72]
Resta, no entanto, refletir sobre o papel dos Estados Unidos na sociedade global do presente. Se o Estado-nação tornou-se incapaz de controlar a relação de capital e se o Império é a resposta à impossibilidade de garantir o desenvolvimento capitalista por meio da regulação interna ao espaço nacional, como fica a questão da hegemonia norte-americana, que se impõe em todos os lugares e em todos os âmbitos, da cultura à economia, da política à força militar?
Na contra-corrente das principais linhas do pensamento político contemporâneo, Negri e Hardt sustentam em Império que os Estados Unidos e nenhuma outra potência podem ser o centro de um novo projeto imperialista. Ao reanalisar esta afirmação à luz das intervenções militares que se sucederam à publicação (2000) do livro e ao 11 de setembro de 2001, Negri reitera que a soberania imperial não tem como objetivo a assimilação político-territorial de países e povos, como era típico do imperialismo e do colonialismo. Reafirma também que o comando imperial quer garantir – por aparatos políticos, jurídicos e militares – a ordem global e uma paz estável que permitam o funcionamento do mercado. Ele assinala, ainda, que não se deve confundir os Estados Unidos e a ideologia e a prática ‘imperialista’ do governo Bush com o governo do Império. Pelo contrário, esse movimento atual do poderio norte-americano estaria em rota de colisão com as forças capitalistas que constituem o Império.
O antiamericanismo confunde o povo americano com o estado americano e não dá conta de que os Estados Unidos estão inseridos no mercado mundial como os outros países e que a política de Bush é minoritária no âmbito do capitalismo multinacional. O antiamericanismo seria, assim, “um estado de espírito perigoso, uma ideologia que mistifica os dados da análise e cobre a responsabilidade do capital coletivo” [NEGRI, 2003: 31]. Negri acrescenta que a liderança dos Estados Unidos está, na verdade, enfraquecida justamente por suas tendências imperialistas. E cita duas boas notícias em meio aos terrores e temores do presente: o superpoder militar americano está em parte neutralizado pela impossibilidade de usar o potencial nuclear, enquanto do ponto de vista monetário, o país está cada vez mais exposto e vulnerável nos mercados financeiros. Negri aposta na probabilidade de que os Estados Unidos serão logo obrigados a reconhecer o Império.
Também cabe referência aqui a algo que vem se delineando com crescente velocidade e maior nitidez no campo da resistência. Talvez possa ser outra notícia positiva. Trata-se de acontecimentos protagonizados pelo que se denomina ‘nova sociedade civil global’, que utiliza meios tecnológicos (como a Internet e telefones celulares) para se manifestar e existir independentemente das instituições políticas e do sistema midiático. Além dos incontáveis exemplos locais, nacionais e regionais, destacam-se eventos de impacto mundial como as manifestações pela paz em fevereiro de 2003 e a derrota eleitoral do primeiro-ministro José María Aznar na Espanha depois dos atentados terroristas em março de 2004. Aquelas manifestações e a virada nos rumos da eleição espanhola são acontecimentos deflagrados de forma muito rápida, quase instantânea, autônoma, independente de um comando central de controle, constituindo um espaço público desterritorializado de organização, diálogo e decisões coletivas. O poder dessa ‘nova sociedade civil’ é evidente, como também é a corrida do mercado para cooptá-la e do poder imperial para constitucionalizá-la.
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