3 – Salário social
Programa político
No último capítulo de Império, Negri e Hardt dedicam-se à questão da resistência, à oposição entre multidão e Império, e avançam na direção de um programa político da multidão global. A tarefa principal é investigar como a multidão pode tornar-se sujeito político. Começam assinalando que as revoluções do século 20, longe de derrotadas, criaram as condições de uma nova subjetividade política: a multidão insurgente contra o poder imperial. O Império é uma resposta a esta multidão. Sua constituição não é causa, mas conseqüência dos novos poderes produzidos pelos movimentos revolucionários.
A estrutura de Império contém um Intermezzo em que os autores se propõem a articular o caminho entre o reino das idéias e o da produção, penetrando mais profundamente no mundo em que as desigualdades se mostram mais claramente e onde surgem as resistências mais eficazes e as alternativas ao poder do Império. Eles recorrem a Marx para lembrar que as lutas proletárias constituem de fato o motor do desenvolvimento capitalista, obrigando o capital a adotar novas tecnologias e, assim, transformar os processos de trabalho. “As lutas forçam o capital continuamente a reformar as relações de produção e transformar as relações de dominação.” [HARDT & NEGRI, 2001: 228]
Se o poder do trabalho é a própria fonte do capital, o seu elemento mais interno, é também o exterior do capital, o lugar da recusa à exploração, da resistência e da revolução. Negri e Hardt observam que, em Marx, a relação entre interior e exterior no desenvolvimento capitalista é determinada na perspectiva dual do proletariado. Apontam, porém, que no mundo contemporâneo essa configuração espacial mudou. A exploração capitalista se estende por toda parte; não se limita à fábrica, ocupando todo o terreno social. De outro lado, as relações sociais alcançam todas as relações de produção. O poder de dominação já não tem um lugar determinado e a exploração não pode ser localizada e quantificada. É a própria capacidade universal de produzir – a atividade social abstrata e seu poder inclusivo – que passa a ser objeto de exploração e dominação. Mas o trabalho abstrato, sem lugar certo, é também poderoso.
“É o conjunto cooperativo de cérebros e mãos, mentes e corpos; é simultaneamente o não fazer parte e a difusão social do trabalho ativo; é o desejo e o esforço da miríade de operários móveis e flexíveis; e ao mesmo tempo é energia intelectual e lingüística e construção comunicativa de uma multidão de operários intelectuais e afetivos”. [HARDT & NEGRI, 2001: 229]
Negri e Hardt reposicionam a questão do republicanismo agora, no mundo contemporâneo. Apontam a ‘vontade de ser contra’ como elemento fundamental. Embora possa não parecer óbvio hoje, é natural que os explorados resistam e se rebelem. A questão não é por que o povo se rebela, mas por que não o faz. Chega-se, então, ao problema da identificação do inimigo contra o qual se rebelar. Isso não é fácil porque a exploração não tem lugar específico e porque estamos imersos num sistema de poder extremamente complexo. Mas o inimigo existe e também a resistência. A globalidade do comando é a imagem invertida da generalidade da produção da multidão. E esta imagem invertida não indica qualquer homologia. O poder imperial não pode disciplinar os poderes da multidão; pode apenas impor controles. Para os autores de Império, ser republicano hoje significa lutar dentro e construir contra a ordem imperial.
“A multidão, em sua vontade de ser contra e em seu desejo de libertação, precisa atravessar o Império para sair do outro lado”. [HARDT & NEGRI, 2001: 238]
Como? Como as ações da multidão se tornam políticas? A resposta está na história e também no poder produtivo atual da multidão. A mobilidade de indivíduos e populações que existe hoje no Império não pode ser subjugada completamente às leis da acumulação capitalista. A multidão circula, se reapropria de espaços e constitui-se como sujeito político. Migrações em massa são necessárias para a produção. Negri e Hardt perguntam: É possível imaginar a agricultura e o setor de serviços dos EUA sem o migrante mexicano, ou o petróleo árabe sem palestinos e paquistaneses? E onde estariam os setores inovadores do design, moda, eletrônica, ciência do chamado Primeiro Mundo sem a ‘mão-de-obra ilegal’ das multidões atraídas pelos horizontes da riqueza e da liberdade capitalistas? As ações da multidão se tornam políticas quando enfrentam a repressão do Império.
“É questão de reconhecer e dar combate às iniciativas imperiais e não lhes permitir que restabeleçam a ordem continuamente; é questão de contrariar e subverter os limites e segmentações impostos à nova força coletiva de trabalho; é questão de reunir esses instrumentos de resistência e empunhá-los de comum acordo contra os centros nervosos do poder imperial.” [HARDT & NEGRI, 2001: 423]
Mas esta tarefa, embora clara, ainda é abstrata. Que práticas concretas comporiam os projeto político da multidão global? Quais seriam os elementos do seu programa político?
Negri e Hardt apontam a ‘cidadania global’ como a primeira demanda política da multidão. É preciso que o status político da população acompanhe as transformações econômicas dos últimos anos. O capital é que exige mobilidade crescente da força de trabalho mundial e migrações além das fronteiras nacionais. Não faz sentido, portanto, falar em ‘mão-de-obra ilegal’, perseguir, restringir direitos e negar documentos aos trabalhadores migrantes. A expressão radical da demanda pela ‘cidadania global’ é o direito da multidão de ‘controlar o próprio movimento’. Se num primeiro momento a questão é o reconhecimento jurídico das migrações necessárias ao capital, depois a multidão deve exigir o controle de seus próprios movimentos.
Outra demanda da multidão é o ‘direito a um salário social’. Negri e Hardt voltam à Grécia Clássica para lembrar que Aristóteles teve o mérito de separar a definição de tempo da experiência individual e do espiritualismo, mostrando sua dimensão coletiva, mas o restringiu a um padrão de medida transcendente. De lá para cá (passando por Kant e Heidegger) o tempo tem sido delimitado dessa forma. Somente na pós-modernidade há um rompimento com essa configuração. Não com o primeiro elemento da definição aristotélica, que aponta a dimensão coletiva do tempo, mas com a configuração transcendente. O tempo passa a corresponder à existência coletiva e reside na cooperação do povo. Quando se compreende que todos produzem o tempo todo, fica impossível medir o trabalho, seja por convenção ou cálculo. A nova fenomenologia do trabalho da multidão o revela como atividade criadora fundamental, capaz de superar qualquer obstáculo e de recriar o mundo. A atividade da multidão constitui o tempo além da medida. A demanda por um salário social decorre, portando, dessa generalidade dos conceitos de produção e de proletariado. Não se trata de uma nova classe operária, mas da multidão cooperante total, ou seja, todos cujo trabalho é explorado pelo capital.
A terceira demanda política da multidão é ‘o direito à reapropriação’ dos meios de produção. É uma demanda antiga de socialistas e comunistas em todo o mundo. Agora, porém, ela toma novo aspecto. “A multidão não apenas usa máquinas para produzir, mas também se torna cada vez mais maquinal, enquanto os meios de produção são progressivamente integrados às mentes e aos corpos da multidão”. [HARDT & NEGRI, 2001: 430] Aqui, reapropriação quer dizer livre acesso e controle do conhecimento, informação, comunicação e afetos, os meios primários de produção biopolítica.
Alguns críticos afirmam que as propostas programáticas do capítulo final de Império são uma mistura de timidez reformista e utopismo impraticável. Porém, se são procedentes as reflexões e análises das mutações no capitalismo contemporâneo, é necessário que se pense e se discutam desde já propostas de mudanças socioeconômicas, mesmo que pareçam inconseqüentes ou delirantes de um ponto de vista bastante consolidado, mas que se revela cada vez mais deslocado e anacrônico, por não ter permitido sequer a percepção de muitos dos movimentos e problemas que estamos presenciando.
Negri e Hardt concluem Império resgatando o termo ‘posse’ desde a tradição renascentista. Por ter continuado a viver em resistência na tradição do pensamento moderno não transcendentalista, o termo metafísico tornou-se político. “Posse se refere ao poder da multidão e seu telos, um poder personificado de conhecimento e de ser, sempre aberto para o possível”. [HARDT & NEGRI, 2001: 432] É o ponto de vista que permite ver a multidão em sua subjetividade singular: constitui o seu modo de produção e seu ser. A posse pós-moderna substitui a república moderna. O que falta no confronto entre multidão e Império é a insurreição de uma poderosa organização. Não há qualquer modelo a oferecer para isso. Para Negri e Hardt, só a própria multidão, pela experimentação prática, oferecerá os modelos e determinará quando e como o possível se tornará real.
O arauto desta transformação é o militante. Depois de tantas vitórias capitalistas e desilusões socialistas, a militância ainda surge, a resistência se aprofunda e a luta revigora. A nova militância não é representativa, mas constituinte. É positiva, construtiva e inovadora. Repete das virtudes da ação insurrecional, mas está ligada a um mundo novo, que não conhece lado de fora, o mundo da cooperação produtiva e das redes afetivas.
É interessante observar que o texto de Império, publicado no início de 2000, começou a ser divulgado na imprensa antes do grande protesto antiglobalização de Seattle, em novembro de 1999 (Negri esclarece que a redação foi concluída em 1977). Como assinala Alan Rush [RUSH, 2002] – que se alinha entre os comentadores críticos do trabalho de Negri e Hardt – as manifestações de Seattle, embora não tenham sido a rigor a primeira batalha, inauguram, de fato, um novo ciclo global de lutas, o que confere aos dois pensadores um não desprezível caráter de premonitório.
Pagar a conta
O direito a um salário social é, então, uma das demandas da multidão global no âmbito do programa político anti-Império desenhado por Negri e Hardt. Esta proposta não é original e – como antecipamos no começo desta dissertação – consta tanto de receituários radicalmente comunistas como de formulações reformistas liberais. Muito se debate também sobre sua viabilidade e eventuais fontes de financiamento. Hoje, quando se fala, por exemplo, em fundos globais contra a pobreza – não necessariamente associados à idéia de salário social, mas visando problemas correlatos – cogita-se de taxações sobre transações financeiras, vendas de armas, poluição, entre outras fontes. Mas pouco se discute a redistribuição dos ganhos promovidos pela tecnociência, que constitui a maior fonte de riqueza e o grande motor da reprodução do capitalismo em sua forma atual. Parece que é exatamente isso que sustenta o tabu do desenvolvimento técnico-científico – sua sagrada autonomia em relação à sociedade – e a conseqüente intocabilidade de seus lucros. O que pretendemos analisar aqui é a correspondência natural e aparentemente óbvia entre esta grande capacidade de produzir riqueza e grande potencialidade de sustentar o novo modelo de civilização que surge com o deslocamento do trabalho como forma dominante na atividade humana.
A discussão do financiamento do salário social não é apenas um exercício intelectual, mas está implícito em propostas militantes, como a dos trabalhadores intermitentes franceses [12], que preconizam a taxação das ‘novas formas de riqueza’. Não há porque desconsiderar os ganhos econômicos da tecnociência, no âmbito deste debate, sob a pecha de projeto obscurantista e ameaça ao desenvolvimento técnico-científico. Os lucros promovidos pela tecnologia da informação, biogenética e outras áreas inovadoras estão na origem dessas ‘novas formas de riqueza’, cujos fluxos continuam a obedecer à lógica da economia industrial e do trabalho material, que rapidamente deixam de predominar no capitalismo contemporâneo. A riqueza existente para pagar o salário social nasce da aplicação das inovações na produção. Ao contrário do que a ideologia difunde e o senso comum acolhe, a comunhão dessa riqueza não é um entrave ao desenvolvimento técnico-científico. Ao contrário, o compartilhamento desses ganhos e do conhecimento produzido pela humanidade se traduz em sustentabilidade do processo de inovação, por estender seus benefícios a todas as pessoas e não apenas a grupos beneficiários cada vez mais assustados e armados contra a ameaça da multidão.
Também não se trata de pretender sacrificar a galinha dos ovos de ouro do sistema produtivo. Muito pelo contrário, as reflexões sobre o salário social e seu financiamento estão alinhadas com a busca de saída para os maiores impasses (obstáculos) da economia contemporânea. Apontam, além disso, para as possibilidades da geração de conhecimentos técnico-científicos e sua aplicação à produção liberarem o homem cada vez mais de formas de trabalho praticadas até hoje e que tendem a ser substituídas pelo trabalho imaterial em redes de cooperação. André Gorz, um dos principais estudiosos das mutações do trabalho no capitalismo contemporâneo, descreve da seguinte forma o beco sem saída em que a economia atual insiste em se embrenhar:
“Se produce un creciente volumen de riquezas con un volumen decreciente de capital y trabajo; en consecuencia, la producción distribuye a un número decreciente de activos un volumen decreciente de remuneraciones y de salarios; diminuye el poder de compra de una proporción creciente de la población; el desempleo, la pobreza, la miseria absoluta se expanden. La productividad rápidamente creciente del trabajo y del capital entraña un excedente de fuerza de trabajo y de capital. Éste busca agrandarse sin pasar por la mediación del trabajo productivo – por operaciones en los mercados financieros y los mercados de cambio – o invirtiendo en países con salarios muy bajos. Las actividades e inversiones no rentables a corto plazo (investigación, educación, servicios y equipamientos públicos, salvaguarda del medio ambiente, etcétera) dejan de ser financiables como consecuencia de la contracción de la masa de los salarios, pero también en razón de las exoneraciones fiscales que los Estados consienten al capital para frenar su éxodo.” [GORZ, 1998: 99]
Gorz entende que o tema do salário social é inseparável do desenvolvimento e da disponibilidade de meios que permitam a autonomia e a estimulem, isto é, os meios pelos quais os indivíduos e grupos possam satisfazer, através do seu trabalho livre, uma parte das necessidades e desejos que eles mesmos tenham definido. Para ele, as discussões sobre o valor do salário social – que remetem, conseqüentemente à temática do seu financiamento – não fazem muito sentido agora. Este debate obscureceria a questão de fundo relacionada às mutações em curso no capitalismo, localizando-se ainda no marco da sociedade salarial – cada vez menos importante – e buscando formas de financiamento por meio da distribuição de receitas fiscais geradas em um regime econômico e de trabalho que tende a deixar de ser predominante.
“Pero la perspectiva que se nos abre y en la cual hay que ubicarse es la de una regresión del trabajo-empleo, de las ventas de trabajo y de servicios y de un desarrollo de los equipamientos y de los servicios colectivos, de los intercambios monetarios y de las autoproducciones. Éstas, según Frithjoff Bergmann, podrían fácilmente cubrir el 70% de las necesidades y los deseos en los días de trabajo semanal.
Las fórmulas debatidas en la actualidad pueden acercar o alejar de ese término último, abrir esta perspectiva o cerrarla, ilustrar la necesidad de una ruptura o ignorarla. Sobre esta base hay que juzgarlas”. [GORZ, 1998: 94]
O tema, porém, está posto, na teoria e na prática. E cabe refletir a respeito de todos os seus aspectos ao menos para confrontar os questionamentos ao nível do senso comum e da ideologia dominante de que a idéia de uma renda mínima universal e desvinculada do trabalho seria um desvario extraterrestre.
Além do mais, estamos tratando do surgimento de uma sociedade diferente, anunciada em nosso dia-a-dia, que terá necessariamente novas formas de trabalho e de pagamento, uma nova noção de dinheiro e moeda, enfim, terá uma outra economia. E de qualquer ponto de vista que se disponha a antever essa nova sociedade, sempre será identificada a centralidade da tecnociência, a exemplo da intuição profética de Marx nos Grundrisse.
Mas, voltando ao presente, é curioso registrar que o Brasil – apesar ou mesmo devido às suas características de país periférico e socialmente desigual – já percorreu um bom pedaço do caminho na direção do salário social. A idéia foi transformada em lei pelo presidente Lula no início deste ano, depois de tramitar durante 14 anos no Congresso Nacional, por iniciativa do senador Eduardo Suplicy. Embora seja um passo importante, trata-se, na prática, de não mais que uma autorização ao governo para pagar uma renda básica a todos os brasileiros, sem estabelecer valores e prazos rígidos. É claro que a questão do financiamento está posta. De onde vem o dinheiro? Esta é, sem dúvida, a primeira pergunta que ocorre toda vez que o tema é examinado em qualquer lugar. O governo brasileiro informou que ainda não tem os recursos e que pretende implantar o salário social gradativamente a partir do próximo ano, provavelmente remanejando outros programas de transferência de renda para os pobres. Segundo o senador Suplicy, o único lugar no mundo em que a renda mínima está implantada regularmente, com a característica de direito incondicional de toda população, é o estado do Alasca.
Existem programas de transferência de renda para pessoas e famílias pobres em diversos países, sob inúmeras formas, mas sem o caráter de incondicionalidade e universalidade.
Antes de avançar na discussão sobre o financiamento do salário social, cabe recapitular alguns dos seus principais fundamentos e problemas, com a ajuda de André Gorz. Ele destaca que a garantia incondicional e universal de renda terá um sentido completamente diferente caso ela seja insuficiente ou suficiente para proteger contra a miséria. [13]
A renda mínima ‘insuficiente’, segundo seus partidários, deve substituir os mecanismos redistributivos, como seguro desemprego, dotações para alimentação e moradia, entre outros. Uma renda inferior ao mínimo vital força o desempregado a aceitar trabalhos penosos e de baixa remuneração. Esta é a proposta dos neoliberais da escola de Chicago e de outras correntes liberais e conservadoras. Para eles, o desemprego se explica porque a remuneração ‘suficiente’ do trabalho de baixa qualificação e baixa produtividade não é rentável para as empresas. Portanto, é preciso subvencionar estes empregos assegurando-se uma renda social insuficiente para viver que se somaria a uma renda do trabalho igualmente insuficiente. Assim, protege-se o mercado da competição de países que praticam salários mais baixos e também dos dispositivos do direito do trabalho, condenados a desaparecer. Quanto mais baixa a renda básica, mais forte é a indução a aceitar qualquer trabalho e mais se desenvolvem as empresas voláteis em termos de localização e subcontratação de serviços. Gorz inclui na categoria de renda mínima ‘insuficiente’ o sistema do ‘workfare’ norte-americano, que associa o direito a uma renda baixa à obrigação de realizar trabalho de ‘utilidade social’, e à proposta de uma ‘renda de existência’ universal e incondicional, mas também muito baixa, proposta na França, para indenização ao desemprego e estímulo ao trabalho intermitente.
“Un ‘ingreso de existencia’ muy bajo es, de hecho, una subvención a los empleadores. (...) El ingreso continuo para un trabajo discontinuo revela de tal manera sus trampas. A menos, entendámoslo bien, que las intermitencias del trabajo, su discontinuidad se relacione no ya con el poder discrecional del capital sobre el trabajo, sino con el derecho individual y colectivo de los prestatarios de trabajo a la autogestión de su tiempo”. [GORZ, 1998: 93]
Para Gorz, o pagamento de um salário social ‘suficiente’ a todos os cidadãos atende a uma lógica diferente da que sustenta a proposta de uma renda ‘insuficiente’. Não se trata de forçar a aceitação de qualquer tipo de trabalho em qualquer condição, mas de libertar as pessoas das restrições do mercado de trabalho. Deve permitir a todos arbitrar constantemente entre o valor de uso de seu tempo e seu valor de troca, ou seja, entre os bens que pode comprar vendendo tempo de trabalho e as que pode produzir pela autovalorização deste tempo. Não se deve compreender o salário social como uma forma de assistência nem de proteção social, que torna as pessoas dependentes do Estado. É preciso entendê-lo como a transferência aos indivíduos e grupos de meios e poderes crescentes para tomarem conta de suas próprias vidas. Não se trata de dispensar o trabalho, mas de restabelecer o direito ao trabalho concreto, que se faz sem que seja necessário ser pago, sem valor de troca.
A pergunta sobre a origem do dinheiro para pagar a renda social põe em evidência, segundo Gorz (aqui, ele próprio não teme obscurecer o sentido maior das mutações do capitalismo), o beco sem saída em que se enfiou o sistema. Por mais que o tempo de trabalho tenha deixado de ser a medida da riqueza criada, ele continua sendo a base de geração das transferências de renda para os pobres e dos gastos sociais do Estado. Ou seja, a economia enfrenta uma situação em que as somas a distribuir para cobrir necessidades individuais e coletivas tendem a superar as somas geradas pela produção.
Portanto, não é somente a renda social que não é financiável sob essas bases; são todos os gastos do Estado e da sociedade que estão em cheque. Não deixa de ser irônico que isso esteja ocorrendo quando o engenho humano possibilita a criação de riqueza com cada vez menos trabalho. Gorz cita a metáfora criada por Wassily Leontieff: ‘Quando a criação de riqueza não depender mais do trabalho dos homens, eles morrerão de fome às portas do Paraíso, a menos que se estabeleça uma nova política de renda correspondente à nova situação técnica’.
Embora pareça um sonho impossível, o salário social ‘suficiente’ para todos deve ser pensado e viabilizado desde já. Trata-se, como vimos, uma tendência que se insere na perspectiva proposta nos Grundrisse por Marx no âmbito dos desdobramentos do capitalismo pós-industrial e do surgimento de um novo modo de produção, cujo limiar estamos começando a perceber. Pensada no extremo de suas conseqüências, esta proposta equivale, segundo Gorz, a uma comunhão das riquezas socialmente produzidas. Uma comunhão e não uma ‘repartição’, que vem depois. Comunhão é o compartilhamento entre todos do que é de todos e, em conseqüência, não é de ninguém. Assim, o princípio de ‘a cada um de acordo com o seu trabalho’ se torna caduco na lógica econômica que se anuncia.
Aos muitos que consideram irrealista a idéia do salário social garantido e/ou afirmam que se trata de uma demanda ilegítima tanto do ponto de vista da economia como da ética (por não oferecer contrapartida em termos de criação de riqueza), vale examinar o ensaio de Carlo Vercellone, ‘Mutations du concept de travail productif et nouvelles normes de répartition’. [VERCELLONE, 2003] Ele demonstra que a demanda é legítima e que os recursos para viabilizá-la já podem ser mobilizados.
Quanto à legitimidade, Vercelone assinala que a contrapartida de trabalho ao salário social já existe, cabendo conferir este fato de duas maneiras: 1) pela valoração do impacto do ‘trabalho social’, oculto das estatísticas econômicas, na formação do PIB e; 2) pelo cômputo das ‘externalidades positivas’ que a economia não mercantil propicia à economia mercantil, em especial a crescente contribuição do conhecimento coletivo nos ganhos de produtividade e de inovação.
Sobre a disponibilidade de recursos para pagar o salário social, Vercelone também propõe duas abordagens: 1) considerar, por um lado, o conjunto das transferências de renda já praticadas em inúmeros países, a cujo valor podem ser acrescidas as economias propiciadas pela simplicidade da implementação do salário social, além do valor decorrente de remanejamentos possíveis das taxações sobre as rendas do capital e do trabalho; e 2) reconsiderar, por outro lado, as próprias noções de trabalho produtivo e riqueza, à luz das mudanças introduzidas na economia global no contexto do ‘capitalismo cognitivo’.
Parafraseando os Grundrisse, André Gorz assinala que o trabalho produtivo imediato vai sendo substituído como força produtiva principal pelo ‘nível geral da ciência (...) e sua aplicação à produção’, quer dizer, pela capacidade dos ‘indivíduos sociais’ de tirar partido da tecnociência e fazê-la funcionar pela auto-organização de sua cooperação. Então, ‘o livre desenvolvimento das individualidades’ pela ‘redução ao mínimo do trabalho necessário’ e a produção de valores de uso em função das necessidades, é o que ocorrerá no fim.
A proposta do salário social universal e ‘suficiente’ tem, portanto, um valor heurístico, explorando no sentido mais radical as tendências que se abrem na evolução presente da sociedade. Ela põe a nu, como destaca Gorz, um sistema que realiza economias de tempo de trabalho sem precedentes, mas transforma este tempo liberado em uma calamidade, porque não consegue distribuí-lo, nem distribuir as riquezas produzidas ou produtíveis. Trata-se de um sistema incapaz de reconhecer o valor intrínseco do ‘ócio e do tempo para as atividades superiores’, antevisto por Marx.
O debate sobre o salário social leva, então, à porta de entrada da nova sociedade que se configura como conseqüência das tendências em curso. André Gorz assinala que o ato de explicitar esta perspectiva é necessário para dar às mutações atuais o sentido mais elevado que podem ter e, além disso, para que se possam desenvolver práticas para atualização deste sentido e de apropriação destas mutações. O salário social remete a uma sociedade na qual todos são solicitados por uma abundância de atividades artísticas, desportivas, tecnocientíficas, políticas, filosóficas; na qual os meios de produção são acessíveis a todos, como já começam a ser hoje os bancos de dados e as formas de trabalho à distância; na qual as trocas são fundamentalmente de conhecimentos e não de mercadorias, sem a mediação necessária do dinheiro; na qual a imaterialidade do trabalho corresponda à imaterialidade da forma principal de capital fixo. Trata-se, portanto, de tirar partido do saber acumulado pela humanidade para a própria humanidade.
Para André Gorz, este é o sentido em que deve ser entendida a observação de Marx nos Grundrisse de que ‘o tempo livre, o tempo para o pleno desenvolvimento do indivíduo (...) pode ser considerado, do ponto de vista do processo de produção imediato, como produção de capital fixo, esse capital fixo being man himself’. O tempo livre, desta forma, permite aos indivíduos desenvolverem capacidades que lhe conferem uma produtividade quase ilimitada e isso não é trabalho (Gorz registra que Negri e Hardt sustentam que se trata de trabalho) por mais que tenha o mesmo resultado que o trabalho ‘do ponto de vista do processo de produção imediato’. Não é trabalho porque se tornou possível graças à (Gorz volta a citar os Grundrisse) ‘redução a um mínimo cada vez mais baixo do tempo de trabalho necessário para a sociedade’, Este tempo liberado é o que permite o ‘livre desenvolvimento das individualidades’, que, por sua vez, reaparece na produção como uma capacidade ilimitada de criar riquezas com pequeno gasto de tempo e de energia. Dito de outra forma: “el aumento de la capacidad productiva de los individuos es la consecuencia y no el fin de su pleno desarrollo. El fin no es – y esto es lo que ‘man’ difiere de ‘capital fijo’ – llevar al máximo la producción por la producción, el poderío por el poderío, sino economizar el tiempo de trabajo y el gasto de energía necesarios para el desarrollo de la vida’. [GORZ, 1998: 103]
Gorz resgata a citação do ricardiano anônimo citado por Marx nos Grundrisse – ‘Uma nação é verdadeiramente rica quando em vez de 12 horas se trabalham 6’ – sentenciando que é impossível dizer de forma mais clara que o pleno desenvolvimento das forças produtivas dispensa o pleno emprego das forças produtivas (em particular da força de trabalho) e faz da produção uma atividade assessória. Pode-se concluir, segundo Gorz, que a produtividade ‘gigantesca’ que a tecnociência dá ao trabalho humano impõe como fim imanente da razão econômica maximizar o tempo disponível e não maximizar a produção. Assim, ‘a verdadeira economia – a que economiza – é economia de tempo de trabalho’ (Grundrisse), é a que leva a eliminação do trabalho como forma dominante de atividade. É este deslocamento da centralidade do trabalho e a sua substituição pela atividade criativa pessoal que deve se tornar politicamente realizável a partir das mutações que ocorrem desde agora.
No último capítulo de Império, Negri e Hardt dedicam-se à questão da resistência, à oposição entre multidão e Império, e avançam na direção de um programa político da multidão global. A tarefa principal é investigar como a multidão pode tornar-se sujeito político. Começam assinalando que as revoluções do século 20, longe de derrotadas, criaram as condições de uma nova subjetividade política: a multidão insurgente contra o poder imperial. O Império é uma resposta a esta multidão. Sua constituição não é causa, mas conseqüência dos novos poderes produzidos pelos movimentos revolucionários.
A estrutura de Império contém um Intermezzo em que os autores se propõem a articular o caminho entre o reino das idéias e o da produção, penetrando mais profundamente no mundo em que as desigualdades se mostram mais claramente e onde surgem as resistências mais eficazes e as alternativas ao poder do Império. Eles recorrem a Marx para lembrar que as lutas proletárias constituem de fato o motor do desenvolvimento capitalista, obrigando o capital a adotar novas tecnologias e, assim, transformar os processos de trabalho. “As lutas forçam o capital continuamente a reformar as relações de produção e transformar as relações de dominação.” [HARDT & NEGRI, 2001: 228]
Se o poder do trabalho é a própria fonte do capital, o seu elemento mais interno, é também o exterior do capital, o lugar da recusa à exploração, da resistência e da revolução. Negri e Hardt observam que, em Marx, a relação entre interior e exterior no desenvolvimento capitalista é determinada na perspectiva dual do proletariado. Apontam, porém, que no mundo contemporâneo essa configuração espacial mudou. A exploração capitalista se estende por toda parte; não se limita à fábrica, ocupando todo o terreno social. De outro lado, as relações sociais alcançam todas as relações de produção. O poder de dominação já não tem um lugar determinado e a exploração não pode ser localizada e quantificada. É a própria capacidade universal de produzir – a atividade social abstrata e seu poder inclusivo – que passa a ser objeto de exploração e dominação. Mas o trabalho abstrato, sem lugar certo, é também poderoso.
“É o conjunto cooperativo de cérebros e mãos, mentes e corpos; é simultaneamente o não fazer parte e a difusão social do trabalho ativo; é o desejo e o esforço da miríade de operários móveis e flexíveis; e ao mesmo tempo é energia intelectual e lingüística e construção comunicativa de uma multidão de operários intelectuais e afetivos”. [HARDT & NEGRI, 2001: 229]
Negri e Hardt reposicionam a questão do republicanismo agora, no mundo contemporâneo. Apontam a ‘vontade de ser contra’ como elemento fundamental. Embora possa não parecer óbvio hoje, é natural que os explorados resistam e se rebelem. A questão não é por que o povo se rebela, mas por que não o faz. Chega-se, então, ao problema da identificação do inimigo contra o qual se rebelar. Isso não é fácil porque a exploração não tem lugar específico e porque estamos imersos num sistema de poder extremamente complexo. Mas o inimigo existe e também a resistência. A globalidade do comando é a imagem invertida da generalidade da produção da multidão. E esta imagem invertida não indica qualquer homologia. O poder imperial não pode disciplinar os poderes da multidão; pode apenas impor controles. Para os autores de Império, ser republicano hoje significa lutar dentro e construir contra a ordem imperial.
“A multidão, em sua vontade de ser contra e em seu desejo de libertação, precisa atravessar o Império para sair do outro lado”. [HARDT & NEGRI, 2001: 238]
Como? Como as ações da multidão se tornam políticas? A resposta está na história e também no poder produtivo atual da multidão. A mobilidade de indivíduos e populações que existe hoje no Império não pode ser subjugada completamente às leis da acumulação capitalista. A multidão circula, se reapropria de espaços e constitui-se como sujeito político. Migrações em massa são necessárias para a produção. Negri e Hardt perguntam: É possível imaginar a agricultura e o setor de serviços dos EUA sem o migrante mexicano, ou o petróleo árabe sem palestinos e paquistaneses? E onde estariam os setores inovadores do design, moda, eletrônica, ciência do chamado Primeiro Mundo sem a ‘mão-de-obra ilegal’ das multidões atraídas pelos horizontes da riqueza e da liberdade capitalistas? As ações da multidão se tornam políticas quando enfrentam a repressão do Império.
“É questão de reconhecer e dar combate às iniciativas imperiais e não lhes permitir que restabeleçam a ordem continuamente; é questão de contrariar e subverter os limites e segmentações impostos à nova força coletiva de trabalho; é questão de reunir esses instrumentos de resistência e empunhá-los de comum acordo contra os centros nervosos do poder imperial.” [HARDT & NEGRI, 2001: 423]
Mas esta tarefa, embora clara, ainda é abstrata. Que práticas concretas comporiam os projeto político da multidão global? Quais seriam os elementos do seu programa político?
Negri e Hardt apontam a ‘cidadania global’ como a primeira demanda política da multidão. É preciso que o status político da população acompanhe as transformações econômicas dos últimos anos. O capital é que exige mobilidade crescente da força de trabalho mundial e migrações além das fronteiras nacionais. Não faz sentido, portanto, falar em ‘mão-de-obra ilegal’, perseguir, restringir direitos e negar documentos aos trabalhadores migrantes. A expressão radical da demanda pela ‘cidadania global’ é o direito da multidão de ‘controlar o próprio movimento’. Se num primeiro momento a questão é o reconhecimento jurídico das migrações necessárias ao capital, depois a multidão deve exigir o controle de seus próprios movimentos.
Outra demanda da multidão é o ‘direito a um salário social’. Negri e Hardt voltam à Grécia Clássica para lembrar que Aristóteles teve o mérito de separar a definição de tempo da experiência individual e do espiritualismo, mostrando sua dimensão coletiva, mas o restringiu a um padrão de medida transcendente. De lá para cá (passando por Kant e Heidegger) o tempo tem sido delimitado dessa forma. Somente na pós-modernidade há um rompimento com essa configuração. Não com o primeiro elemento da definição aristotélica, que aponta a dimensão coletiva do tempo, mas com a configuração transcendente. O tempo passa a corresponder à existência coletiva e reside na cooperação do povo. Quando se compreende que todos produzem o tempo todo, fica impossível medir o trabalho, seja por convenção ou cálculo. A nova fenomenologia do trabalho da multidão o revela como atividade criadora fundamental, capaz de superar qualquer obstáculo e de recriar o mundo. A atividade da multidão constitui o tempo além da medida. A demanda por um salário social decorre, portando, dessa generalidade dos conceitos de produção e de proletariado. Não se trata de uma nova classe operária, mas da multidão cooperante total, ou seja, todos cujo trabalho é explorado pelo capital.
A terceira demanda política da multidão é ‘o direito à reapropriação’ dos meios de produção. É uma demanda antiga de socialistas e comunistas em todo o mundo. Agora, porém, ela toma novo aspecto. “A multidão não apenas usa máquinas para produzir, mas também se torna cada vez mais maquinal, enquanto os meios de produção são progressivamente integrados às mentes e aos corpos da multidão”. [HARDT & NEGRI, 2001: 430] Aqui, reapropriação quer dizer livre acesso e controle do conhecimento, informação, comunicação e afetos, os meios primários de produção biopolítica.
Alguns críticos afirmam que as propostas programáticas do capítulo final de Império são uma mistura de timidez reformista e utopismo impraticável. Porém, se são procedentes as reflexões e análises das mutações no capitalismo contemporâneo, é necessário que se pense e se discutam desde já propostas de mudanças socioeconômicas, mesmo que pareçam inconseqüentes ou delirantes de um ponto de vista bastante consolidado, mas que se revela cada vez mais deslocado e anacrônico, por não ter permitido sequer a percepção de muitos dos movimentos e problemas que estamos presenciando.
Negri e Hardt concluem Império resgatando o termo ‘posse’ desde a tradição renascentista. Por ter continuado a viver em resistência na tradição do pensamento moderno não transcendentalista, o termo metafísico tornou-se político. “Posse se refere ao poder da multidão e seu telos, um poder personificado de conhecimento e de ser, sempre aberto para o possível”. [HARDT & NEGRI, 2001: 432] É o ponto de vista que permite ver a multidão em sua subjetividade singular: constitui o seu modo de produção e seu ser. A posse pós-moderna substitui a república moderna. O que falta no confronto entre multidão e Império é a insurreição de uma poderosa organização. Não há qualquer modelo a oferecer para isso. Para Negri e Hardt, só a própria multidão, pela experimentação prática, oferecerá os modelos e determinará quando e como o possível se tornará real.
O arauto desta transformação é o militante. Depois de tantas vitórias capitalistas e desilusões socialistas, a militância ainda surge, a resistência se aprofunda e a luta revigora. A nova militância não é representativa, mas constituinte. É positiva, construtiva e inovadora. Repete das virtudes da ação insurrecional, mas está ligada a um mundo novo, que não conhece lado de fora, o mundo da cooperação produtiva e das redes afetivas.
É interessante observar que o texto de Império, publicado no início de 2000, começou a ser divulgado na imprensa antes do grande protesto antiglobalização de Seattle, em novembro de 1999 (Negri esclarece que a redação foi concluída em 1977). Como assinala Alan Rush [RUSH, 2002] – que se alinha entre os comentadores críticos do trabalho de Negri e Hardt – as manifestações de Seattle, embora não tenham sido a rigor a primeira batalha, inauguram, de fato, um novo ciclo global de lutas, o que confere aos dois pensadores um não desprezível caráter de premonitório.
Pagar a conta
O direito a um salário social é, então, uma das demandas da multidão global no âmbito do programa político anti-Império desenhado por Negri e Hardt. Esta proposta não é original e – como antecipamos no começo desta dissertação – consta tanto de receituários radicalmente comunistas como de formulações reformistas liberais. Muito se debate também sobre sua viabilidade e eventuais fontes de financiamento. Hoje, quando se fala, por exemplo, em fundos globais contra a pobreza – não necessariamente associados à idéia de salário social, mas visando problemas correlatos – cogita-se de taxações sobre transações financeiras, vendas de armas, poluição, entre outras fontes. Mas pouco se discute a redistribuição dos ganhos promovidos pela tecnociência, que constitui a maior fonte de riqueza e o grande motor da reprodução do capitalismo em sua forma atual. Parece que é exatamente isso que sustenta o tabu do desenvolvimento técnico-científico – sua sagrada autonomia em relação à sociedade – e a conseqüente intocabilidade de seus lucros. O que pretendemos analisar aqui é a correspondência natural e aparentemente óbvia entre esta grande capacidade de produzir riqueza e grande potencialidade de sustentar o novo modelo de civilização que surge com o deslocamento do trabalho como forma dominante na atividade humana.
A discussão do financiamento do salário social não é apenas um exercício intelectual, mas está implícito em propostas militantes, como a dos trabalhadores intermitentes franceses [12], que preconizam a taxação das ‘novas formas de riqueza’. Não há porque desconsiderar os ganhos econômicos da tecnociência, no âmbito deste debate, sob a pecha de projeto obscurantista e ameaça ao desenvolvimento técnico-científico. Os lucros promovidos pela tecnologia da informação, biogenética e outras áreas inovadoras estão na origem dessas ‘novas formas de riqueza’, cujos fluxos continuam a obedecer à lógica da economia industrial e do trabalho material, que rapidamente deixam de predominar no capitalismo contemporâneo. A riqueza existente para pagar o salário social nasce da aplicação das inovações na produção. Ao contrário do que a ideologia difunde e o senso comum acolhe, a comunhão dessa riqueza não é um entrave ao desenvolvimento técnico-científico. Ao contrário, o compartilhamento desses ganhos e do conhecimento produzido pela humanidade se traduz em sustentabilidade do processo de inovação, por estender seus benefícios a todas as pessoas e não apenas a grupos beneficiários cada vez mais assustados e armados contra a ameaça da multidão.
Também não se trata de pretender sacrificar a galinha dos ovos de ouro do sistema produtivo. Muito pelo contrário, as reflexões sobre o salário social e seu financiamento estão alinhadas com a busca de saída para os maiores impasses (obstáculos) da economia contemporânea. Apontam, além disso, para as possibilidades da geração de conhecimentos técnico-científicos e sua aplicação à produção liberarem o homem cada vez mais de formas de trabalho praticadas até hoje e que tendem a ser substituídas pelo trabalho imaterial em redes de cooperação. André Gorz, um dos principais estudiosos das mutações do trabalho no capitalismo contemporâneo, descreve da seguinte forma o beco sem saída em que a economia atual insiste em se embrenhar:
“Se produce un creciente volumen de riquezas con un volumen decreciente de capital y trabajo; en consecuencia, la producción distribuye a un número decreciente de activos un volumen decreciente de remuneraciones y de salarios; diminuye el poder de compra de una proporción creciente de la población; el desempleo, la pobreza, la miseria absoluta se expanden. La productividad rápidamente creciente del trabajo y del capital entraña un excedente de fuerza de trabajo y de capital. Éste busca agrandarse sin pasar por la mediación del trabajo productivo – por operaciones en los mercados financieros y los mercados de cambio – o invirtiendo en países con salarios muy bajos. Las actividades e inversiones no rentables a corto plazo (investigación, educación, servicios y equipamientos públicos, salvaguarda del medio ambiente, etcétera) dejan de ser financiables como consecuencia de la contracción de la masa de los salarios, pero también en razón de las exoneraciones fiscales que los Estados consienten al capital para frenar su éxodo.” [GORZ, 1998: 99]
Gorz entende que o tema do salário social é inseparável do desenvolvimento e da disponibilidade de meios que permitam a autonomia e a estimulem, isto é, os meios pelos quais os indivíduos e grupos possam satisfazer, através do seu trabalho livre, uma parte das necessidades e desejos que eles mesmos tenham definido. Para ele, as discussões sobre o valor do salário social – que remetem, conseqüentemente à temática do seu financiamento – não fazem muito sentido agora. Este debate obscureceria a questão de fundo relacionada às mutações em curso no capitalismo, localizando-se ainda no marco da sociedade salarial – cada vez menos importante – e buscando formas de financiamento por meio da distribuição de receitas fiscais geradas em um regime econômico e de trabalho que tende a deixar de ser predominante.
“Pero la perspectiva que se nos abre y en la cual hay que ubicarse es la de una regresión del trabajo-empleo, de las ventas de trabajo y de servicios y de un desarrollo de los equipamientos y de los servicios colectivos, de los intercambios monetarios y de las autoproducciones. Éstas, según Frithjoff Bergmann, podrían fácilmente cubrir el 70% de las necesidades y los deseos en los días de trabajo semanal.
Las fórmulas debatidas en la actualidad pueden acercar o alejar de ese término último, abrir esta perspectiva o cerrarla, ilustrar la necesidad de una ruptura o ignorarla. Sobre esta base hay que juzgarlas”. [GORZ, 1998: 94]
O tema, porém, está posto, na teoria e na prática. E cabe refletir a respeito de todos os seus aspectos ao menos para confrontar os questionamentos ao nível do senso comum e da ideologia dominante de que a idéia de uma renda mínima universal e desvinculada do trabalho seria um desvario extraterrestre.
Além do mais, estamos tratando do surgimento de uma sociedade diferente, anunciada em nosso dia-a-dia, que terá necessariamente novas formas de trabalho e de pagamento, uma nova noção de dinheiro e moeda, enfim, terá uma outra economia. E de qualquer ponto de vista que se disponha a antever essa nova sociedade, sempre será identificada a centralidade da tecnociência, a exemplo da intuição profética de Marx nos Grundrisse.
Mas, voltando ao presente, é curioso registrar que o Brasil – apesar ou mesmo devido às suas características de país periférico e socialmente desigual – já percorreu um bom pedaço do caminho na direção do salário social. A idéia foi transformada em lei pelo presidente Lula no início deste ano, depois de tramitar durante 14 anos no Congresso Nacional, por iniciativa do senador Eduardo Suplicy. Embora seja um passo importante, trata-se, na prática, de não mais que uma autorização ao governo para pagar uma renda básica a todos os brasileiros, sem estabelecer valores e prazos rígidos. É claro que a questão do financiamento está posta. De onde vem o dinheiro? Esta é, sem dúvida, a primeira pergunta que ocorre toda vez que o tema é examinado em qualquer lugar. O governo brasileiro informou que ainda não tem os recursos e que pretende implantar o salário social gradativamente a partir do próximo ano, provavelmente remanejando outros programas de transferência de renda para os pobres. Segundo o senador Suplicy, o único lugar no mundo em que a renda mínima está implantada regularmente, com a característica de direito incondicional de toda população, é o estado do Alasca.
Existem programas de transferência de renda para pessoas e famílias pobres em diversos países, sob inúmeras formas, mas sem o caráter de incondicionalidade e universalidade.
Antes de avançar na discussão sobre o financiamento do salário social, cabe recapitular alguns dos seus principais fundamentos e problemas, com a ajuda de André Gorz. Ele destaca que a garantia incondicional e universal de renda terá um sentido completamente diferente caso ela seja insuficiente ou suficiente para proteger contra a miséria. [13]
A renda mínima ‘insuficiente’, segundo seus partidários, deve substituir os mecanismos redistributivos, como seguro desemprego, dotações para alimentação e moradia, entre outros. Uma renda inferior ao mínimo vital força o desempregado a aceitar trabalhos penosos e de baixa remuneração. Esta é a proposta dos neoliberais da escola de Chicago e de outras correntes liberais e conservadoras. Para eles, o desemprego se explica porque a remuneração ‘suficiente’ do trabalho de baixa qualificação e baixa produtividade não é rentável para as empresas. Portanto, é preciso subvencionar estes empregos assegurando-se uma renda social insuficiente para viver que se somaria a uma renda do trabalho igualmente insuficiente. Assim, protege-se o mercado da competição de países que praticam salários mais baixos e também dos dispositivos do direito do trabalho, condenados a desaparecer. Quanto mais baixa a renda básica, mais forte é a indução a aceitar qualquer trabalho e mais se desenvolvem as empresas voláteis em termos de localização e subcontratação de serviços. Gorz inclui na categoria de renda mínima ‘insuficiente’ o sistema do ‘workfare’ norte-americano, que associa o direito a uma renda baixa à obrigação de realizar trabalho de ‘utilidade social’, e à proposta de uma ‘renda de existência’ universal e incondicional, mas também muito baixa, proposta na França, para indenização ao desemprego e estímulo ao trabalho intermitente.
“Un ‘ingreso de existencia’ muy bajo es, de hecho, una subvención a los empleadores. (...) El ingreso continuo para un trabajo discontinuo revela de tal manera sus trampas. A menos, entendámoslo bien, que las intermitencias del trabajo, su discontinuidad se relacione no ya con el poder discrecional del capital sobre el trabajo, sino con el derecho individual y colectivo de los prestatarios de trabajo a la autogestión de su tiempo”. [GORZ, 1998: 93]
Para Gorz, o pagamento de um salário social ‘suficiente’ a todos os cidadãos atende a uma lógica diferente da que sustenta a proposta de uma renda ‘insuficiente’. Não se trata de forçar a aceitação de qualquer tipo de trabalho em qualquer condição, mas de libertar as pessoas das restrições do mercado de trabalho. Deve permitir a todos arbitrar constantemente entre o valor de uso de seu tempo e seu valor de troca, ou seja, entre os bens que pode comprar vendendo tempo de trabalho e as que pode produzir pela autovalorização deste tempo. Não se deve compreender o salário social como uma forma de assistência nem de proteção social, que torna as pessoas dependentes do Estado. É preciso entendê-lo como a transferência aos indivíduos e grupos de meios e poderes crescentes para tomarem conta de suas próprias vidas. Não se trata de dispensar o trabalho, mas de restabelecer o direito ao trabalho concreto, que se faz sem que seja necessário ser pago, sem valor de troca.
A pergunta sobre a origem do dinheiro para pagar a renda social põe em evidência, segundo Gorz (aqui, ele próprio não teme obscurecer o sentido maior das mutações do capitalismo), o beco sem saída em que se enfiou o sistema. Por mais que o tempo de trabalho tenha deixado de ser a medida da riqueza criada, ele continua sendo a base de geração das transferências de renda para os pobres e dos gastos sociais do Estado. Ou seja, a economia enfrenta uma situação em que as somas a distribuir para cobrir necessidades individuais e coletivas tendem a superar as somas geradas pela produção.
Portanto, não é somente a renda social que não é financiável sob essas bases; são todos os gastos do Estado e da sociedade que estão em cheque. Não deixa de ser irônico que isso esteja ocorrendo quando o engenho humano possibilita a criação de riqueza com cada vez menos trabalho. Gorz cita a metáfora criada por Wassily Leontieff: ‘Quando a criação de riqueza não depender mais do trabalho dos homens, eles morrerão de fome às portas do Paraíso, a menos que se estabeleça uma nova política de renda correspondente à nova situação técnica’.
Embora pareça um sonho impossível, o salário social ‘suficiente’ para todos deve ser pensado e viabilizado desde já. Trata-se, como vimos, uma tendência que se insere na perspectiva proposta nos Grundrisse por Marx no âmbito dos desdobramentos do capitalismo pós-industrial e do surgimento de um novo modo de produção, cujo limiar estamos começando a perceber. Pensada no extremo de suas conseqüências, esta proposta equivale, segundo Gorz, a uma comunhão das riquezas socialmente produzidas. Uma comunhão e não uma ‘repartição’, que vem depois. Comunhão é o compartilhamento entre todos do que é de todos e, em conseqüência, não é de ninguém. Assim, o princípio de ‘a cada um de acordo com o seu trabalho’ se torna caduco na lógica econômica que se anuncia.
Aos muitos que consideram irrealista a idéia do salário social garantido e/ou afirmam que se trata de uma demanda ilegítima tanto do ponto de vista da economia como da ética (por não oferecer contrapartida em termos de criação de riqueza), vale examinar o ensaio de Carlo Vercellone, ‘Mutations du concept de travail productif et nouvelles normes de répartition’. [VERCELLONE, 2003] Ele demonstra que a demanda é legítima e que os recursos para viabilizá-la já podem ser mobilizados.
Quanto à legitimidade, Vercelone assinala que a contrapartida de trabalho ao salário social já existe, cabendo conferir este fato de duas maneiras: 1) pela valoração do impacto do ‘trabalho social’, oculto das estatísticas econômicas, na formação do PIB e; 2) pelo cômputo das ‘externalidades positivas’ que a economia não mercantil propicia à economia mercantil, em especial a crescente contribuição do conhecimento coletivo nos ganhos de produtividade e de inovação.
Sobre a disponibilidade de recursos para pagar o salário social, Vercelone também propõe duas abordagens: 1) considerar, por um lado, o conjunto das transferências de renda já praticadas em inúmeros países, a cujo valor podem ser acrescidas as economias propiciadas pela simplicidade da implementação do salário social, além do valor decorrente de remanejamentos possíveis das taxações sobre as rendas do capital e do trabalho; e 2) reconsiderar, por outro lado, as próprias noções de trabalho produtivo e riqueza, à luz das mudanças introduzidas na economia global no contexto do ‘capitalismo cognitivo’.
Parafraseando os Grundrisse, André Gorz assinala que o trabalho produtivo imediato vai sendo substituído como força produtiva principal pelo ‘nível geral da ciência (...) e sua aplicação à produção’, quer dizer, pela capacidade dos ‘indivíduos sociais’ de tirar partido da tecnociência e fazê-la funcionar pela auto-organização de sua cooperação. Então, ‘o livre desenvolvimento das individualidades’ pela ‘redução ao mínimo do trabalho necessário’ e a produção de valores de uso em função das necessidades, é o que ocorrerá no fim.
A proposta do salário social universal e ‘suficiente’ tem, portanto, um valor heurístico, explorando no sentido mais radical as tendências que se abrem na evolução presente da sociedade. Ela põe a nu, como destaca Gorz, um sistema que realiza economias de tempo de trabalho sem precedentes, mas transforma este tempo liberado em uma calamidade, porque não consegue distribuí-lo, nem distribuir as riquezas produzidas ou produtíveis. Trata-se de um sistema incapaz de reconhecer o valor intrínseco do ‘ócio e do tempo para as atividades superiores’, antevisto por Marx.
O debate sobre o salário social leva, então, à porta de entrada da nova sociedade que se configura como conseqüência das tendências em curso. André Gorz assinala que o ato de explicitar esta perspectiva é necessário para dar às mutações atuais o sentido mais elevado que podem ter e, além disso, para que se possam desenvolver práticas para atualização deste sentido e de apropriação destas mutações. O salário social remete a uma sociedade na qual todos são solicitados por uma abundância de atividades artísticas, desportivas, tecnocientíficas, políticas, filosóficas; na qual os meios de produção são acessíveis a todos, como já começam a ser hoje os bancos de dados e as formas de trabalho à distância; na qual as trocas são fundamentalmente de conhecimentos e não de mercadorias, sem a mediação necessária do dinheiro; na qual a imaterialidade do trabalho corresponda à imaterialidade da forma principal de capital fixo. Trata-se, portanto, de tirar partido do saber acumulado pela humanidade para a própria humanidade.
Para André Gorz, este é o sentido em que deve ser entendida a observação de Marx nos Grundrisse de que ‘o tempo livre, o tempo para o pleno desenvolvimento do indivíduo (...) pode ser considerado, do ponto de vista do processo de produção imediato, como produção de capital fixo, esse capital fixo being man himself’. O tempo livre, desta forma, permite aos indivíduos desenvolverem capacidades que lhe conferem uma produtividade quase ilimitada e isso não é trabalho (Gorz registra que Negri e Hardt sustentam que se trata de trabalho) por mais que tenha o mesmo resultado que o trabalho ‘do ponto de vista do processo de produção imediato’. Não é trabalho porque se tornou possível graças à (Gorz volta a citar os Grundrisse) ‘redução a um mínimo cada vez mais baixo do tempo de trabalho necessário para a sociedade’, Este tempo liberado é o que permite o ‘livre desenvolvimento das individualidades’, que, por sua vez, reaparece na produção como uma capacidade ilimitada de criar riquezas com pequeno gasto de tempo e de energia. Dito de outra forma: “el aumento de la capacidad productiva de los individuos es la consecuencia y no el fin de su pleno desarrollo. El fin no es – y esto es lo que ‘man’ difiere de ‘capital fijo’ – llevar al máximo la producción por la producción, el poderío por el poderío, sino economizar el tiempo de trabajo y el gasto de energía necesarios para el desarrollo de la vida’. [GORZ, 1998: 103]
Gorz resgata a citação do ricardiano anônimo citado por Marx nos Grundrisse – ‘Uma nação é verdadeiramente rica quando em vez de 12 horas se trabalham 6’ – sentenciando que é impossível dizer de forma mais clara que o pleno desenvolvimento das forças produtivas dispensa o pleno emprego das forças produtivas (em particular da força de trabalho) e faz da produção uma atividade assessória. Pode-se concluir, segundo Gorz, que a produtividade ‘gigantesca’ que a tecnociência dá ao trabalho humano impõe como fim imanente da razão econômica maximizar o tempo disponível e não maximizar a produção. Assim, ‘a verdadeira economia – a que economiza – é economia de tempo de trabalho’ (Grundrisse), é a que leva a eliminação do trabalho como forma dominante de atividade. É este deslocamento da centralidade do trabalho e a sua substituição pela atividade criativa pessoal que deve se tornar politicamente realizável a partir das mutações que ocorrem desde agora.
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