Apresentação
Hoje, mesmo com os sinais de insustentabilidade da forma de vida contemporânea, o senso comum segue professando a fé no mercado como marco absoluto da sociedade, ao qual tudo deve se referir. A crítica ao capitalismo soa desconexa, obsoleta ou nostálgica para a maioria das pessoas. Embora ocorra uma indissimulável inflexão na onda triunfalista e totalizadora que abarcou o planeta nos anos 80 e 90, tudo segue como se não houvesse alternativa. Não bastam o genocídio pela fome, a alienação pela miséria, a multiplicação das guerras. Pode-se admitir o ‘amém’ a esta catástrofe por conta do egoísmo atribuído à natureza humana e ao niilismo escapista. Afinal, a vida se transforma em espetáculo zapeado da poltrona na frente da tevê. Mas a crise – incerteza econômica, violência social e terrorismo político generalizado – penetra de fato no cotidiano de cada indivíduo, ocupa as ruas e as praças das cidades e invade as casas, mesmo as presumidamente inexpugnáveis. Não só os perdedores sociais, mas também os supostos ganhadores pagam a conta do nosso modelo de civilização. Mesmo assim ouvimos e lemos a toda hora que não há nada melhor que isso.
É curioso notar que as mesmas fontes que originam a crença inabalável no modelo e fomentam a convicção na inexistência de alternativas factíveis, produzem ininterruptamente o diagnóstico da insustentabilidade e da crise. O sistema de ensino e pesquisa gera conhecimento e a mídia difunde a toda hora e em todos os lugares informações que atestam o imenso poder do capitalismo contemporâneo de gerar riqueza e produzir miséria e destruição. Algumas informações: os gastos anuais dos países ricos com defesa e subsídios agrícolas alcançam US$ 900 bilhões e US$ 350 bilhões, respectivamente. Uma pequena parte deste valor seria suficiente para alimentar todos os famintos do planeta. Sabe-se também que, desde os Anos 60, a produção global de alimentos é suficiente para toda a população mundial, mas os excedentes não chegam às pessoas que passam fome. [1] No mesmo compasso da mídia e das escolas, muitas empresas, governos e organizações transnacionais lançam e alardeiam campanhas e programas para combater a pobreza e salvar o planeta. Mas tudo parece seguir como antes, embora deixando o sentimento de que a pressão aumenta e um dia seremos nós mesmos os personagens trágicos do noticiário da tevê ou de um grandioso filme-catástrofe.
Assim, onde é que se esteja e por todos os meios, o regime impõe a sua regra de ouro. Pode-se conhecer, discutir, reclamar e espernear. Mas é vedada a crença na mudança de paradigma, em algo que se aproxime da idéia de revolução [2]. Mesmo que todos estejamos um tanto acossados, prevalece a certeza de que tudo muda para ficar igual, a vida é assim mesmo. Prolifera o pensamento resignado e complacente: o mundo não tem jeito, não há o que fazer e, portanto, vai-se aproveitando o que dá, com a consciência tranqüila porque, afinal, já se alcançou essa grande verdade. Segue-se adiante ao embalo do ‘deixa a vida me levar’, como apregoa docemente o samba de Zeca Pagodinho. Sobra para a resistência, dependendo, é claro, do grau de militância, a condescendência pela tolice e os rigores da repressão. E sempre a tentativa captura pela ideologia.
Não há mesmo nada melhor que isso?
Investigações sobre as mutações no capitalismo contemporâneo dão conta de que algo se move na sociedade, apesar da aparente fadiga da crítica e da militância. Mudanças no trabalho e na produção e uso do conhecimento operam transformações no sistema econômico e estimulam o surgimento de uma nova subjetividade, novos sujeitos sociais, independentes e autônomos, portadores de potência de resistência e alternativa ao domínio capitalista. Exercícios para a identificação e a análise de tais movimentos atualizam o arsenal teórico das ciências sociais e da filosofia, reinterpretando reflexões de Marx sobre o trabalho e as relações de produção, avançando nos caminhos trilhados pelos pensadores da escola de Frankfurt e incorporando as contribuições de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari sobre o biopoder como norma na sociedade de controle.
Embora a vida contemporânea – incluindo o que alguns chamam de sociedade do conhecimento – siga obedecendo à lógica do mercado e mesmo que teóricos e militantes não concordem se estamos presenciando tendências latentes ou vivenciando transformações efetivas, é fato que se passou a dispor de ferramentas de análise que permitem observar movimentos e problemas que sequer estavam sendo considerados há pouco tempo. Mais que uma contribuição ao entendimento das mudanças sociais em nossa época, este esforço teórico contribui para impulsionar a retomada da crítica e aposta na potência de transformação social dos novos sujeitos. Anuncia, além disso, uma modificação no próprio conceito de revolução, que deixa de ser interpretada como um processo que alcança termo e passa a ser compreendida como um devir permanente e infindável.
No âmbito desse movimento, um importante elo foi acrescentado à corrente do pensamento crítico por Maurizio Lazzarato e Antonio Negri, no início dos Anos 90. Eles identificaram a tendência de transformação da natureza do trabalho no capitalismo contemporâneo – com o enfraquecimento do predomínio do modelo fordista e a crescente participação do ‘trabalho imaterial’, baseado no conhecimento e na cooperação – e passaram a demonstrar como esta mudança se associa ao surgimento de uma nova subjetividade. [3] A noção de trabalho imaterial tornou-se referencial obrigatório na análise e na crítica do capitalismo contemporâneo.
Dez anos depois do artigo sobre trabalho imaterial e subjetividade, o mesmo Negri, juntamente com Michael Hardt, formularam o conceito de Império, [HARDT & NEGRI, 2001] no qual, as categorias de biopoder e biopolítica passam a constituir o centro da análise da sociedade contemporânea e, portanto, da transição do moderno ao pós-moderno. O Império, na concepção destes autores, é a expressão política reguladora do processo de globalização, o poder supremo que se materializa e governa o mundo em que estamos hoje. Negri e Hardt também desenvolvem o conceito de multidão, a força de trabalho do novo modo de produção que surge, em que o trabalho imaterial é hegemônico. Discorrem, além disso, sobre a potência da multidão de resistência ao Império. [4] Eles identificam no Império “um potencial maior de revolução do que os regimes modernos de poder” [HARDT & NEGRI, 2001: 417] porque apresenta a alternativa de uma multidão que a ele se opõe diretamente, sem mediadores.
Império, o livro, tornou-se um sucesso editorial em todo o mundo e passou a provocar debates e polêmicas, com adesões e contestações de suas teses, quase sempre de forma apaixonada. Suas idéias parecem ter surpreendido a todos, à direita e à esquerda, no centro do sistema capitalista e na periferia, produzindo interpretações e reações aparentemente disparatadas. O sistema midiático global tem dado amplo espaço à difusão de algumas de suas análises, especialmente da transição do imperialismo ao Império e da modernidade para a pós-modernidade, destacando menos as questões relacionadas à resistência e à potência de mudanças na subjetividade associadas ao surgimento de um novo modo de produção. Tony Negri é incensado como celebridade intelectual global, embora sua militância política seja desconsiderada ou problematizada. Ao mesmo tempo, pensadores alinhados à esquerda de tradição marxista, tratam de apontar erros em sua teoria e acusar desvios: apologia à globalização, indulgência com o imperialismo americano, eurocentrismo, visão determinista, voluntarismo, utopismo impraticável, timidez reformista e deturpação do pensamento marxiano [5].
Porém, mesmo alguns dos opositores das idéias reunidas em Império admitem que elas trouxeram um sopro de vida à crítica ao capitalismo e continuam desafiando interpretações e práticas políticas que pareciam aturdidas e abatidas diante das transformações que ocorrem, em escala planetária, na economia e na sociedade. Não deve ser excluída a hipótese de que alguns questionamentos mais viscerais pela esquerda à obra de Negri e Hardt contenham certo componente de ressentimento, por terem sido eles os animadores da crítica e não a linhagem marxista tradicional.
O último capítulo de Império avança na direção de um ‘programa político’ da multidão global. Uma das demandas apontadas é o ‘direito a um salário social para todos’. Trata-se de uma proposta próxima das utopias comunistas e, ao mesmo tempo, dos receituários reformistas liberais, embora os fundamentos de uma e de outra concepções sejam distintos e seus objetivos antagônicos. A tese neoliberal – de uma renda mínima de subsistência – formulada como providência humanitária e assistencialista, visa reforçar a modelagem atual do capitalismo, enquanto a proposta de um salário social garantido e independente do trabalho é um instrumento de socialização da economia e de comunhão por todos da riqueza gerada pelo desenvolvimento das forças produtivas na atualidade.
Na defesa do salário social, Negri e Hardt chamam atenção para a generalidade da produção na sociedade contemporânea. Durante a fase industrial do capitalismo, parecia que só o trabalho assalariado era produtivo. Hoje, o que resta de trabalho no mundo se move para fora das fábricas e das empresas. No contexto biopolítico, que caracteriza a vida atual, fica cada vez mais difícil separar trabalho produtivo, reprodutivo e improdutivo. Todos produzem independentemente de terem emprego ou não e mesmo de trabalharem ou não. Material ou imaterial, o trabalho é explorado pelo capital, revelando a generalidade também do conceito de proletariado. Parafraseando o ‘cogito’ cartesiano, poderíamos dizer ‘penso, logo produzo’ ou ‘vivo, logo trabalho’.
Acresce que o capitalismo contemporâneo produz desemprego em escala maior que os ‘exércitos de reserva’ da era industrial e muito além das promessas edulcoradas da ‘teoria da compensação’. [6] Esta potencialização do desemprego é sustentada pelo espetacular desenvolvimento tecnológico das últimas décadas associado à lógica da busca da rentabilidade do capital a qualquer custo social. Sabemos que o debate sobre a relação entre inovação tecnológica e emprego tem a idade do próprio capitalismo. Marx, em O Capital, inocentara a máquina das misérias que causa, imputando a responsabilidade ao capitalista. [7] Teses que valorizam os efeitos positivos do progresso técnico avançam quando há crescimento da produção e do emprego. Em períodos de crise, ao contrário, as inovações vão para o banco dos réus. Mesmo a crescente automação promovida pela revolução tecnológica atual não determinaria a priori o aumento do desemprego. É o que procura demonstrar o professor Jorge Mattoso, do Instituto de Economia da Unicamp, no artigo Tecnologia e Emprego, uma Relação Conflituosa. Ao menos nos países desenvolvidos, estaria ocorrendo, nas últimas décadas, a preservação e até mesmo aumento da elasticidade emprego-produto (relação entre a geração de emprego e a variação do nível de produção). [8]
Porém, em termos globais, parece evidente que não existe mais emprego sem crescimento econômico, embora possa haver crescimento sem emprego. E esta condição não pode ser dissociada do processo de inovação, submetido à ótica financeira e ao capital sem fronteiras em fuga das regulações. A elasticidade emprego-produto tem sido baixa mesmo em países de grande crescimento, como a China e a Índia, que enfrentam hoje problemas de desemprego e precariedade do trabalho.
A inovação tecnológica, em si, pode não ser necessariamente sinônimo de desemprego e é bom que não seja. O progresso técnico produz desemprego, mas também pode resultar em mais emprego, consumo ou tempo livre. Como observa Mattoso, trata-se de uma ‘escolha social’, historicamente determinada pelas formas de regulação do sistema produtivo e de distribuição dos ganhos de produtividade. Estes ganhos podem ser destinados de maneiras bastante distintas na sociedade, entre trabalhadores (aumento do poder de compra e/ou redução do tempo de trabalho), empresários (maior margem de lucro), consumidores (redução dos preços) ou Estado (elevação da carga tributária). Mas é exatamente aí que está o ‘xis do problema’ no capitalismo. E o capitalismo imperial não é exceção.
O mesmo Marx que inocentou a máquina previra nos Grundrisse, [9] que o capital passaria a depender cada vez menos do trabalho para se reproduzir, devido fundamentalmente ao desenvolvimento técnico-científico. O pilar da produção e da riqueza deixaria, no capitalismo avançado, de ser o trabalho imediato do homem ou o tempo que ele trabalha, mas o próprio conhecimento, o poder geral do intelecto humano através da aplicação da ciência à produção. Mas o capitalista irá insistir em reduzir a força social do desenvolvimento do intelecto aos limites do valor do tempo de trabalho, num movimento que levará o capitalismo a consumir a si próprio.
Assim, se a legitimidade moral da demanda pelo salário social decorre da generalidade da produção no âmbito da multidão, a justificativa econômica está relacionada à própria tendência do capitalismo contemporâneo de depender menos do trabalho.
Em termos morais, a oposição ao salário social, universal e incondicional, não reconhece a contrapartida do trabalho não-mercantil em termos de criação de riqueza. Porém, o que dizer do trabalho da dona-de-casa e das inúmeras outras formas de trabalho não contabilizadas nas chamadas ‘contas nacionais’? A contabilidade macroeconômica não computa o valor do ‘trabalho social’ no cálculo do PIB, nem as ‘externalidades positivas’ que este trabalho propicia à economia mercantil. Essa produção de riqueza não é considerada e, portanto, a ela não se atribui a necessária remuneração. Quanto à justificativa econômica, o salário social se apresenta como uma saída para o impasse ao qual se dirige o capitalismo por insistir em padrões de distribuição de riqueza funcionais para o sistema produtivo de base industrial e presos ao tempo de trabalho como referencial de valor. Este impasse se configura no emaranhado da economia contemporânea. É bem claro o diagnóstico desenhado por André Gorz [GORZ, 1998]: O sistema produz cada vez mais riqueza com menos capital e menos trabalho. Em conseqüência, a produção remunera menos a todos, cai o poder de compra da maioria da população e aumenta o desemprego. O excedente de capital procura o lucro sem a mediação do trabalho produtivo, principalmente em operações financeiras. O resultado é mais desemprego e menos recursos para atender as demandas sociais. O salário social seria uma saída para este impasse, mediante a comunhão da riqueza gerada pelo desenvolvimento técnico-científico.
Para Gorz, a proposta do salário social põe a nu um sistema que realiza economias de tempo e trabalho sem precedentes, mas transforma este tempo liberado em calamidade. Ele destaca que não se deve entender o salário social como assistência ou proteção social, mas como a transferência aos indivíduos e grupos dos meios para tomarem conta de suas próprias vidas.
A despeito da discussão sobre o caráter reformista ou não da proposta do salário social, parece interessante refletir sobre a factibilidade de sua materialização e a disponibilidade de recursos para pagá-lo, à luz da centralidade da tecnociência no capitalismo contemporâneo e da constatação de que o trabalho direto na produção dá lugar ao conhecimento como principal fator de reprodução do capital.
Não resta dúvida de que o capitalismo globalizado se expande por conta dos lucros gerados pelas novas tecnologias, notadamente a informática e a biogenética. Os ganhos de produtividade fomentados pela tecnologia geraram o boom econômico americano dos anos 90 e sua ‘exuberância irracional’, conforme a expressão do presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan. Também sabemos que esta expansão continua ocorrendo – agora de forma mais problemática e menos triunfalista – a altos custos ambientais e sociais. Vivemos sob ameaça crescente de catástrofes (nucleares e biológicas, por exemplo), em cuja origem estão avanços da tecnociência. Habitamos um planeta em que a miséria não pára de aumentar e mesmo os milagres do progresso tecnocientífico não são capazes de mitigar.
É evidente que não está em questão culpar ou penalizar a inovação nem tampouco festejar a emergência da sociedade do conhecimento. A tecnociência está tanto no centro do sistema atual de exploração como na gênese do novo modo de produção e da nova forma de vida que se anunciam. Embora possa parecer heresia antiprogressista ou devaneio idealista para a maioria das pessoas, é legítimo considerar que os lucros produzidos pela tecnociência não são sagrados. Como admitem até mesmo os chamados ‘economistas burgueses’, os ganhos de produtividade decorrentes do progresso técnico podem produzir mais lucro e mais miséria ou mesmo mais lucro e menos miséria, dependendo da ‘escolha social’. Podem continuar empurrando o próprio capitalismo para um beco sem saída ou até afastá-lo do impasse.
Seja como solução reformista, seja por força dos movimentos globais de resistência antiimperialista e antiimperial – devido ou não a algo que possa ser interpretado como determinismo evolucionista – o salário social se apresenta como perspectiva na sociedade contemporânea. O dinheiro para pagá-lo terá de vir de alguma fonte e parece óbvio que seja da própria fonte da riqueza e da reprodução do capital.
Gorz não vê muito sentido em se debater agora o valor do salário social e, portanto, o seu financiamento. Trata-se, segundo ele, de um debate referido ao marco da sociedade salarial, que tende a ser cada vez menos importante. Pode, ainda, tirar o foco do aspecto essencial da questão, que se relaciona às mutações no capitalismo atual e o surgimento de um novo modo de produção. Mas, o referencial da riqueza produzida pela tecnociência vale para a economia atual e para a que virá, como se depreende da intuição de Marx nos Grudrisse. O debate sobre o financiamento do salário social tem também o mérito de trazer o tema da teoria para o embate concreto na sociedade, ao especular sobre quem deve e pode pagar a conta. Além disso, a discussão serve para confrontar as habituais imputações de desvario à proposta de um salário social para todos.
Hoje se fala bastante em fundos globais contra a fome e para transferência de renda aos pobres. Sempre se cogita das mais variadas formas de financiamento: taxação sobre a venda de armas, sobre a poluição, a exploração de recursos naturais e as transações financeiras. Todas são tão problemáticas como a utilização de parte dos lucros fomentados pela tecnociência. A proposta de redirecionamento e repartição dos ganhos de produtividade gerados pelas inovações tecnocientíficas, quando escapa do pensamento de alguém, é logo estigmatizada como obscurantismo. Talvez o tabu exista exatamente porque o desenvolvimento tecnocientífico é o motor do capitalismo contemporâneo. Parece pavoroso imaginar que a fonte primária de riqueza e poder possa ser compartilhada de outra forma.
Resta, neste conjunto de especulações, refletir a respeito da relação entre técnica e sociedade humana e, portanto, sobre os limites e potencialidades que a troca de propriedades (capacidades, valores etc.) entre homem e máquina estabelecem para a construção do futuro. Como observam Bruno Latour e Laurent Bibard [LATOUR & BIBARD], é a própria forma do homem que está em questão na técnica. Poder e técnica se confundem e a experiência tem demonstrado que não basta trocar os homens que se servem da técnica para reorientar as forças produtivas numa direção libertadora. Também não parece simples pensar a mudança da natureza da própria técnica. Para não cair na paralisia nem na impotência cabe reconhecer que homem e técnica se mestiçam e se hibridam. Não há como escapar da técnica, da mesma forma que não há como fugir do mundo. Alguns homens de poder, apoiados pela técnica, dominam a multidão. E todos tendem a se reconciliar para que o híbrido homem-máquina domine a natureza. É, portanto, a própria idéia de dominação que está em questão, impondo novas formas de pensar e fazer política.
Esta idéia esdrúxula e aparentemente tão distante do nosso mundo referenciado ao mercado – o salário social universal e desvinculado do trabalho – ganha sentido quando se percebem os grandes impasses contemporâneos e se identificam as transformações na produção, no trabalho e na subjetividade que deixam perceber os limites do capitalismo e prenunciam um novo modo de produção, uma nova sociedade e, talvez, uma mudança de paradigma tão radical, como foi a passagem do mundo medieval para a modernidade. Podemos estar sendo hoje testemunhas do surgimento de valores, categorias de pensamento e mesmo de uma geografia e um léxico renovados que lhes correspondem. Toda esta mudança pede a nova política, não mais referenciada à representação e à translação do poder do indivíduo aos Estado. No presente, esta é a prática política da resistência ao Império, a ação do militante que não se conforma e não se lamenta, não teme desafiar o futuro e se lança na aventura de ir ao encontro do mundo que se anuncia. Negri assinala que ser republicano hoje significa lutar dentro e construir contra a ordem imperial. A ação da multidão se torna política quando enfrenta a repressão do Império. É esta prática que determinará quando o possível se tornará real.
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Esta dissertação reúne reflexões sobre o tema da resistência, procurando associá-las a uma especulação sobre o financiamento do ‘salário social para todos’, proposto no âmbito do ‘programa político’ desenhado por Negri e Hardt em Império. Além da apresentação, o trabalho é composto de quatro partes e uma conclusão. A primeira parte examina sucintamente os seguintes temas relacionados à resistência ao Império: 1) biopoder, biopolítica e o paradoxo de um poder que controla tudo e parece produzir a sua própria dissolução; 2) trabalho imaterial, formas de subjetivação e o prenúncio de um novo modo de produção na sociedade pós-industrial e 3) multidão e poder constituinte. A segunda parte trata da questão da periodização do capitalismo e da fundamentação do surgimento do Império. A terceira analisa o direito ao ‘salário social’, procurando conectar as questões do financiamento deste direito aos ganhos gerados pelas inovações técnico-científicas. A centralidade da tecnociência no capitalismo contemporâneo é o tema da quarta parte. A conclusão é dedicada ao tema da prática política, comentando uma questão que se impõe desde sempre no pensamento crítico: o que fazer?
É curioso notar que as mesmas fontes que originam a crença inabalável no modelo e fomentam a convicção na inexistência de alternativas factíveis, produzem ininterruptamente o diagnóstico da insustentabilidade e da crise. O sistema de ensino e pesquisa gera conhecimento e a mídia difunde a toda hora e em todos os lugares informações que atestam o imenso poder do capitalismo contemporâneo de gerar riqueza e produzir miséria e destruição. Algumas informações: os gastos anuais dos países ricos com defesa e subsídios agrícolas alcançam US$ 900 bilhões e US$ 350 bilhões, respectivamente. Uma pequena parte deste valor seria suficiente para alimentar todos os famintos do planeta. Sabe-se também que, desde os Anos 60, a produção global de alimentos é suficiente para toda a população mundial, mas os excedentes não chegam às pessoas que passam fome. [1] No mesmo compasso da mídia e das escolas, muitas empresas, governos e organizações transnacionais lançam e alardeiam campanhas e programas para combater a pobreza e salvar o planeta. Mas tudo parece seguir como antes, embora deixando o sentimento de que a pressão aumenta e um dia seremos nós mesmos os personagens trágicos do noticiário da tevê ou de um grandioso filme-catástrofe.
Assim, onde é que se esteja e por todos os meios, o regime impõe a sua regra de ouro. Pode-se conhecer, discutir, reclamar e espernear. Mas é vedada a crença na mudança de paradigma, em algo que se aproxime da idéia de revolução [2]. Mesmo que todos estejamos um tanto acossados, prevalece a certeza de que tudo muda para ficar igual, a vida é assim mesmo. Prolifera o pensamento resignado e complacente: o mundo não tem jeito, não há o que fazer e, portanto, vai-se aproveitando o que dá, com a consciência tranqüila porque, afinal, já se alcançou essa grande verdade. Segue-se adiante ao embalo do ‘deixa a vida me levar’, como apregoa docemente o samba de Zeca Pagodinho. Sobra para a resistência, dependendo, é claro, do grau de militância, a condescendência pela tolice e os rigores da repressão. E sempre a tentativa captura pela ideologia.
Não há mesmo nada melhor que isso?
Investigações sobre as mutações no capitalismo contemporâneo dão conta de que algo se move na sociedade, apesar da aparente fadiga da crítica e da militância. Mudanças no trabalho e na produção e uso do conhecimento operam transformações no sistema econômico e estimulam o surgimento de uma nova subjetividade, novos sujeitos sociais, independentes e autônomos, portadores de potência de resistência e alternativa ao domínio capitalista. Exercícios para a identificação e a análise de tais movimentos atualizam o arsenal teórico das ciências sociais e da filosofia, reinterpretando reflexões de Marx sobre o trabalho e as relações de produção, avançando nos caminhos trilhados pelos pensadores da escola de Frankfurt e incorporando as contribuições de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari sobre o biopoder como norma na sociedade de controle.
Embora a vida contemporânea – incluindo o que alguns chamam de sociedade do conhecimento – siga obedecendo à lógica do mercado e mesmo que teóricos e militantes não concordem se estamos presenciando tendências latentes ou vivenciando transformações efetivas, é fato que se passou a dispor de ferramentas de análise que permitem observar movimentos e problemas que sequer estavam sendo considerados há pouco tempo. Mais que uma contribuição ao entendimento das mudanças sociais em nossa época, este esforço teórico contribui para impulsionar a retomada da crítica e aposta na potência de transformação social dos novos sujeitos. Anuncia, além disso, uma modificação no próprio conceito de revolução, que deixa de ser interpretada como um processo que alcança termo e passa a ser compreendida como um devir permanente e infindável.
No âmbito desse movimento, um importante elo foi acrescentado à corrente do pensamento crítico por Maurizio Lazzarato e Antonio Negri, no início dos Anos 90. Eles identificaram a tendência de transformação da natureza do trabalho no capitalismo contemporâneo – com o enfraquecimento do predomínio do modelo fordista e a crescente participação do ‘trabalho imaterial’, baseado no conhecimento e na cooperação – e passaram a demonstrar como esta mudança se associa ao surgimento de uma nova subjetividade. [3] A noção de trabalho imaterial tornou-se referencial obrigatório na análise e na crítica do capitalismo contemporâneo.
Dez anos depois do artigo sobre trabalho imaterial e subjetividade, o mesmo Negri, juntamente com Michael Hardt, formularam o conceito de Império, [HARDT & NEGRI, 2001] no qual, as categorias de biopoder e biopolítica passam a constituir o centro da análise da sociedade contemporânea e, portanto, da transição do moderno ao pós-moderno. O Império, na concepção destes autores, é a expressão política reguladora do processo de globalização, o poder supremo que se materializa e governa o mundo em que estamos hoje. Negri e Hardt também desenvolvem o conceito de multidão, a força de trabalho do novo modo de produção que surge, em que o trabalho imaterial é hegemônico. Discorrem, além disso, sobre a potência da multidão de resistência ao Império. [4] Eles identificam no Império “um potencial maior de revolução do que os regimes modernos de poder” [HARDT & NEGRI, 2001: 417] porque apresenta a alternativa de uma multidão que a ele se opõe diretamente, sem mediadores.
Império, o livro, tornou-se um sucesso editorial em todo o mundo e passou a provocar debates e polêmicas, com adesões e contestações de suas teses, quase sempre de forma apaixonada. Suas idéias parecem ter surpreendido a todos, à direita e à esquerda, no centro do sistema capitalista e na periferia, produzindo interpretações e reações aparentemente disparatadas. O sistema midiático global tem dado amplo espaço à difusão de algumas de suas análises, especialmente da transição do imperialismo ao Império e da modernidade para a pós-modernidade, destacando menos as questões relacionadas à resistência e à potência de mudanças na subjetividade associadas ao surgimento de um novo modo de produção. Tony Negri é incensado como celebridade intelectual global, embora sua militância política seja desconsiderada ou problematizada. Ao mesmo tempo, pensadores alinhados à esquerda de tradição marxista, tratam de apontar erros em sua teoria e acusar desvios: apologia à globalização, indulgência com o imperialismo americano, eurocentrismo, visão determinista, voluntarismo, utopismo impraticável, timidez reformista e deturpação do pensamento marxiano [5].
Porém, mesmo alguns dos opositores das idéias reunidas em Império admitem que elas trouxeram um sopro de vida à crítica ao capitalismo e continuam desafiando interpretações e práticas políticas que pareciam aturdidas e abatidas diante das transformações que ocorrem, em escala planetária, na economia e na sociedade. Não deve ser excluída a hipótese de que alguns questionamentos mais viscerais pela esquerda à obra de Negri e Hardt contenham certo componente de ressentimento, por terem sido eles os animadores da crítica e não a linhagem marxista tradicional.
O último capítulo de Império avança na direção de um ‘programa político’ da multidão global. Uma das demandas apontadas é o ‘direito a um salário social para todos’. Trata-se de uma proposta próxima das utopias comunistas e, ao mesmo tempo, dos receituários reformistas liberais, embora os fundamentos de uma e de outra concepções sejam distintos e seus objetivos antagônicos. A tese neoliberal – de uma renda mínima de subsistência – formulada como providência humanitária e assistencialista, visa reforçar a modelagem atual do capitalismo, enquanto a proposta de um salário social garantido e independente do trabalho é um instrumento de socialização da economia e de comunhão por todos da riqueza gerada pelo desenvolvimento das forças produtivas na atualidade.
Na defesa do salário social, Negri e Hardt chamam atenção para a generalidade da produção na sociedade contemporânea. Durante a fase industrial do capitalismo, parecia que só o trabalho assalariado era produtivo. Hoje, o que resta de trabalho no mundo se move para fora das fábricas e das empresas. No contexto biopolítico, que caracteriza a vida atual, fica cada vez mais difícil separar trabalho produtivo, reprodutivo e improdutivo. Todos produzem independentemente de terem emprego ou não e mesmo de trabalharem ou não. Material ou imaterial, o trabalho é explorado pelo capital, revelando a generalidade também do conceito de proletariado. Parafraseando o ‘cogito’ cartesiano, poderíamos dizer ‘penso, logo produzo’ ou ‘vivo, logo trabalho’.
Acresce que o capitalismo contemporâneo produz desemprego em escala maior que os ‘exércitos de reserva’ da era industrial e muito além das promessas edulcoradas da ‘teoria da compensação’. [6] Esta potencialização do desemprego é sustentada pelo espetacular desenvolvimento tecnológico das últimas décadas associado à lógica da busca da rentabilidade do capital a qualquer custo social. Sabemos que o debate sobre a relação entre inovação tecnológica e emprego tem a idade do próprio capitalismo. Marx, em O Capital, inocentara a máquina das misérias que causa, imputando a responsabilidade ao capitalista. [7] Teses que valorizam os efeitos positivos do progresso técnico avançam quando há crescimento da produção e do emprego. Em períodos de crise, ao contrário, as inovações vão para o banco dos réus. Mesmo a crescente automação promovida pela revolução tecnológica atual não determinaria a priori o aumento do desemprego. É o que procura demonstrar o professor Jorge Mattoso, do Instituto de Economia da Unicamp, no artigo Tecnologia e Emprego, uma Relação Conflituosa. Ao menos nos países desenvolvidos, estaria ocorrendo, nas últimas décadas, a preservação e até mesmo aumento da elasticidade emprego-produto (relação entre a geração de emprego e a variação do nível de produção). [8]
Porém, em termos globais, parece evidente que não existe mais emprego sem crescimento econômico, embora possa haver crescimento sem emprego. E esta condição não pode ser dissociada do processo de inovação, submetido à ótica financeira e ao capital sem fronteiras em fuga das regulações. A elasticidade emprego-produto tem sido baixa mesmo em países de grande crescimento, como a China e a Índia, que enfrentam hoje problemas de desemprego e precariedade do trabalho.
A inovação tecnológica, em si, pode não ser necessariamente sinônimo de desemprego e é bom que não seja. O progresso técnico produz desemprego, mas também pode resultar em mais emprego, consumo ou tempo livre. Como observa Mattoso, trata-se de uma ‘escolha social’, historicamente determinada pelas formas de regulação do sistema produtivo e de distribuição dos ganhos de produtividade. Estes ganhos podem ser destinados de maneiras bastante distintas na sociedade, entre trabalhadores (aumento do poder de compra e/ou redução do tempo de trabalho), empresários (maior margem de lucro), consumidores (redução dos preços) ou Estado (elevação da carga tributária). Mas é exatamente aí que está o ‘xis do problema’ no capitalismo. E o capitalismo imperial não é exceção.
O mesmo Marx que inocentou a máquina previra nos Grundrisse, [9] que o capital passaria a depender cada vez menos do trabalho para se reproduzir, devido fundamentalmente ao desenvolvimento técnico-científico. O pilar da produção e da riqueza deixaria, no capitalismo avançado, de ser o trabalho imediato do homem ou o tempo que ele trabalha, mas o próprio conhecimento, o poder geral do intelecto humano através da aplicação da ciência à produção. Mas o capitalista irá insistir em reduzir a força social do desenvolvimento do intelecto aos limites do valor do tempo de trabalho, num movimento que levará o capitalismo a consumir a si próprio.
Assim, se a legitimidade moral da demanda pelo salário social decorre da generalidade da produção no âmbito da multidão, a justificativa econômica está relacionada à própria tendência do capitalismo contemporâneo de depender menos do trabalho.
Em termos morais, a oposição ao salário social, universal e incondicional, não reconhece a contrapartida do trabalho não-mercantil em termos de criação de riqueza. Porém, o que dizer do trabalho da dona-de-casa e das inúmeras outras formas de trabalho não contabilizadas nas chamadas ‘contas nacionais’? A contabilidade macroeconômica não computa o valor do ‘trabalho social’ no cálculo do PIB, nem as ‘externalidades positivas’ que este trabalho propicia à economia mercantil. Essa produção de riqueza não é considerada e, portanto, a ela não se atribui a necessária remuneração. Quanto à justificativa econômica, o salário social se apresenta como uma saída para o impasse ao qual se dirige o capitalismo por insistir em padrões de distribuição de riqueza funcionais para o sistema produtivo de base industrial e presos ao tempo de trabalho como referencial de valor. Este impasse se configura no emaranhado da economia contemporânea. É bem claro o diagnóstico desenhado por André Gorz [GORZ, 1998]: O sistema produz cada vez mais riqueza com menos capital e menos trabalho. Em conseqüência, a produção remunera menos a todos, cai o poder de compra da maioria da população e aumenta o desemprego. O excedente de capital procura o lucro sem a mediação do trabalho produtivo, principalmente em operações financeiras. O resultado é mais desemprego e menos recursos para atender as demandas sociais. O salário social seria uma saída para este impasse, mediante a comunhão da riqueza gerada pelo desenvolvimento técnico-científico.
Para Gorz, a proposta do salário social põe a nu um sistema que realiza economias de tempo e trabalho sem precedentes, mas transforma este tempo liberado em calamidade. Ele destaca que não se deve entender o salário social como assistência ou proteção social, mas como a transferência aos indivíduos e grupos dos meios para tomarem conta de suas próprias vidas.
A despeito da discussão sobre o caráter reformista ou não da proposta do salário social, parece interessante refletir sobre a factibilidade de sua materialização e a disponibilidade de recursos para pagá-lo, à luz da centralidade da tecnociência no capitalismo contemporâneo e da constatação de que o trabalho direto na produção dá lugar ao conhecimento como principal fator de reprodução do capital.
Não resta dúvida de que o capitalismo globalizado se expande por conta dos lucros gerados pelas novas tecnologias, notadamente a informática e a biogenética. Os ganhos de produtividade fomentados pela tecnologia geraram o boom econômico americano dos anos 90 e sua ‘exuberância irracional’, conforme a expressão do presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan. Também sabemos que esta expansão continua ocorrendo – agora de forma mais problemática e menos triunfalista – a altos custos ambientais e sociais. Vivemos sob ameaça crescente de catástrofes (nucleares e biológicas, por exemplo), em cuja origem estão avanços da tecnociência. Habitamos um planeta em que a miséria não pára de aumentar e mesmo os milagres do progresso tecnocientífico não são capazes de mitigar.
É evidente que não está em questão culpar ou penalizar a inovação nem tampouco festejar a emergência da sociedade do conhecimento. A tecnociência está tanto no centro do sistema atual de exploração como na gênese do novo modo de produção e da nova forma de vida que se anunciam. Embora possa parecer heresia antiprogressista ou devaneio idealista para a maioria das pessoas, é legítimo considerar que os lucros produzidos pela tecnociência não são sagrados. Como admitem até mesmo os chamados ‘economistas burgueses’, os ganhos de produtividade decorrentes do progresso técnico podem produzir mais lucro e mais miséria ou mesmo mais lucro e menos miséria, dependendo da ‘escolha social’. Podem continuar empurrando o próprio capitalismo para um beco sem saída ou até afastá-lo do impasse.
Seja como solução reformista, seja por força dos movimentos globais de resistência antiimperialista e antiimperial – devido ou não a algo que possa ser interpretado como determinismo evolucionista – o salário social se apresenta como perspectiva na sociedade contemporânea. O dinheiro para pagá-lo terá de vir de alguma fonte e parece óbvio que seja da própria fonte da riqueza e da reprodução do capital.
Gorz não vê muito sentido em se debater agora o valor do salário social e, portanto, o seu financiamento. Trata-se, segundo ele, de um debate referido ao marco da sociedade salarial, que tende a ser cada vez menos importante. Pode, ainda, tirar o foco do aspecto essencial da questão, que se relaciona às mutações no capitalismo atual e o surgimento de um novo modo de produção. Mas, o referencial da riqueza produzida pela tecnociência vale para a economia atual e para a que virá, como se depreende da intuição de Marx nos Grudrisse. O debate sobre o financiamento do salário social tem também o mérito de trazer o tema da teoria para o embate concreto na sociedade, ao especular sobre quem deve e pode pagar a conta. Além disso, a discussão serve para confrontar as habituais imputações de desvario à proposta de um salário social para todos.
Hoje se fala bastante em fundos globais contra a fome e para transferência de renda aos pobres. Sempre se cogita das mais variadas formas de financiamento: taxação sobre a venda de armas, sobre a poluição, a exploração de recursos naturais e as transações financeiras. Todas são tão problemáticas como a utilização de parte dos lucros fomentados pela tecnociência. A proposta de redirecionamento e repartição dos ganhos de produtividade gerados pelas inovações tecnocientíficas, quando escapa do pensamento de alguém, é logo estigmatizada como obscurantismo. Talvez o tabu exista exatamente porque o desenvolvimento tecnocientífico é o motor do capitalismo contemporâneo. Parece pavoroso imaginar que a fonte primária de riqueza e poder possa ser compartilhada de outra forma.
Resta, neste conjunto de especulações, refletir a respeito da relação entre técnica e sociedade humana e, portanto, sobre os limites e potencialidades que a troca de propriedades (capacidades, valores etc.) entre homem e máquina estabelecem para a construção do futuro. Como observam Bruno Latour e Laurent Bibard [LATOUR & BIBARD], é a própria forma do homem que está em questão na técnica. Poder e técnica se confundem e a experiência tem demonstrado que não basta trocar os homens que se servem da técnica para reorientar as forças produtivas numa direção libertadora. Também não parece simples pensar a mudança da natureza da própria técnica. Para não cair na paralisia nem na impotência cabe reconhecer que homem e técnica se mestiçam e se hibridam. Não há como escapar da técnica, da mesma forma que não há como fugir do mundo. Alguns homens de poder, apoiados pela técnica, dominam a multidão. E todos tendem a se reconciliar para que o híbrido homem-máquina domine a natureza. É, portanto, a própria idéia de dominação que está em questão, impondo novas formas de pensar e fazer política.
Esta idéia esdrúxula e aparentemente tão distante do nosso mundo referenciado ao mercado – o salário social universal e desvinculado do trabalho – ganha sentido quando se percebem os grandes impasses contemporâneos e se identificam as transformações na produção, no trabalho e na subjetividade que deixam perceber os limites do capitalismo e prenunciam um novo modo de produção, uma nova sociedade e, talvez, uma mudança de paradigma tão radical, como foi a passagem do mundo medieval para a modernidade. Podemos estar sendo hoje testemunhas do surgimento de valores, categorias de pensamento e mesmo de uma geografia e um léxico renovados que lhes correspondem. Toda esta mudança pede a nova política, não mais referenciada à representação e à translação do poder do indivíduo aos Estado. No presente, esta é a prática política da resistência ao Império, a ação do militante que não se conforma e não se lamenta, não teme desafiar o futuro e se lança na aventura de ir ao encontro do mundo que se anuncia. Negri assinala que ser republicano hoje significa lutar dentro e construir contra a ordem imperial. A ação da multidão se torna política quando enfrenta a repressão do Império. É esta prática que determinará quando o possível se tornará real.
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Esta dissertação reúne reflexões sobre o tema da resistência, procurando associá-las a uma especulação sobre o financiamento do ‘salário social para todos’, proposto no âmbito do ‘programa político’ desenhado por Negri e Hardt em Império. Além da apresentação, o trabalho é composto de quatro partes e uma conclusão. A primeira parte examina sucintamente os seguintes temas relacionados à resistência ao Império: 1) biopoder, biopolítica e o paradoxo de um poder que controla tudo e parece produzir a sua própria dissolução; 2) trabalho imaterial, formas de subjetivação e o prenúncio de um novo modo de produção na sociedade pós-industrial e 3) multidão e poder constituinte. A segunda parte trata da questão da periodização do capitalismo e da fundamentação do surgimento do Império. A terceira analisa o direito ao ‘salário social’, procurando conectar as questões do financiamento deste direito aos ganhos gerados pelas inovações técnico-científicas. A centralidade da tecnociência no capitalismo contemporâneo é o tema da quarta parte. A conclusão é dedicada ao tema da prática política, comentando uma questão que se impõe desde sempre no pensamento crítico: o que fazer?
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