Sunday, August 27, 2006

4 – Centralidade da tecnociência

O desenvolvimento técnico-científico é um dos principais elos de ligação entre as transformações que ocorrem na sociedade atual e a futura forma de vida que tais mudanças anunciam. Trata-se da emergência de um novo modo de produção e uma nova subjetividade e, necessariamente, de uma outra economia, outra organização política, outros valores, outras categorias de pensamento e outro léxico, distintos dos que herdamos da modernidade e que estamos acostumados a praticar.
A tecnociência, portanto, é central desde já, ou melhor desde o momento em que o capital começa a depender menos do trabalho para se reproduzir e mais das inovações científicas aplicadas à produção. Trata-se de um fenômeno mais amplo que o ‘desemprego tecnológico’ e o ‘exército de reserva’ característicos do capitalismo industrial. Hoje não resta dúvida de que o capitalismo se expande em decorrência da riqueza gerada pelas novas tecnologias, em especial a informática e a biogenética, enquanto o trabalho imediato é deslocado do papel predominante no sistema produtivo. O próprio capital é levado a buscar outras oportunidades de lucro e formas de reprodução. O sistema produz cada vez mais riqueza como menos trabalho e, também, com menos capital.
A questão que se coloca hoje para a tecnociência é a mesma da problemática do próprio capitalismo. Embora tenha o poder imenso de gerar riqueza, o capitalismo contemporâneo produz cada vez mais miséria e destruição, mantendo em extrema pobreza a maior parte da humanidade e oferecendo aos demais, aos seus supostos ‘beneficiários’, o avanço progressivo do medo, da angústia e do niilismo. Sob a lógica atual, esfumaçam-se igualmente as esperanças de que o progresso técnico-científco abriria caminho para o fim da pobreza e o acesso de todos ao bem-estar e aos benefícios de uma sociedade mais próspera, livre e justa. Ao contrário, o que se vê é o aumento em vez da redução das distâncias entre as pessoas e os países. Assim, a tecnociência está no centro tanto do sistema presente, que radicaliza o ‘apartheid’ social, como é o alicerce da forma de vida do futuro, de comunhão da riqueza e do saber, prenunciada pelas transformações que ela mesma promove.
Não se trata, portanto, de julgar, culpar ou condenar a tecnociência quando se aponta o seu efeito de gerar desemprego (por ‘libertar’ o homem do trabalho), o seu impacto ameaçador sobre a natureza e a vida humana ou a manipulação de seu desenvolvimento por interesses divorciados da sociedade. Igualmente, não se pretende punir o desenvolvimento técnico-científico ao se sugerir que parte da riqueza decorrente das inovações financie o projeto do salário social incondicional e universal. Como vimos na apresentação desta monografia, parece óbvio que o dinheiro para atender esta demanda terá de vir da própria fonte da riqueza e da reprodução do capital. Além do mais, a proposta do salário social não representa uma dificuldade para a sociedade ou para o sistema produtivo, mas sim uma saída para o impasse econômico atual, que se traduz na busca que o capital empreende pelo lucro sem a mediação do trabalho produtivo (que é cada vez menos necessário), provocando ainda mais desemprego e gerando menos recursos para que os estados possam atender as demandas sociais.
Assumimos, portanto, sem qualquer juízo de valor, que a ciência e a técnica ocupam posição central na vida contemporânea. Têm efeito determinante sobre a constituição do sistema produtivo, a organização social e a formação da subjetividade. Porém, apesar do seu impacto extraordinário e crescente, as decisões relacionadas ao conhecimento científico e ao desenvolvimento tecnológico são divorciadas dos interesses da sociedade e dos indivíduos.
Concomitantemente à sua colossal potência de benefícios, a tecnociência é materializada de forma a produzir ameaças à vida e gera efeitos perversos para imensos e crescentes contingentes de pobres e excluídos em todo o mundo e mesmo para os supostos beneficiários do sistema. O questionamento a este modelo de produção e difusão técnico-científica é sufocado por acusações de obscurantismo, resistência ao progresso e exotismo existencial. O sistema de dominação desqualifica a crítica como oposição ou proposta de desistência da civilização técnica.
A reflexão na sociedade sobre este tema é em geral tímida, ficando restrita a raros círculos intelectuais. Não há debate democrático à altura da relevância do tema. As decisões sobre o que pesquisar ficam na esfera de uma nebulosa entidade chamada ‘comunidade científica’, supostamente legitimadas pela ‘autoridade do saber’ e pela ‘busca do progresso’. As escolhas do que vai ser desenvolvido e aplicado dependem de interesses de empresas e governos. [14]
Um dos discursos ideológicos mais entranhados no senso comum e, portanto, mais poderosos, é o da sacralização da ciência e da técnica. É trivialidade legitimar interesses, mentiras e leviandades com rótulos de ‘novidade científica’, ‘prova científica’ ou ‘estudo científico’. Não importa se pouco tempo depois os benefícios não aparecem e os danos ocorrem; ondas contínuas de descobertas são despejadas na sociedade, espalhadas pela mídia e aceitas pelas pessoas.
A afirmação de que a ciência é assunto que compete privativamente aos cientistas também é lugar comum. ‘Cada macaco no seu galho’, insistem os marqueteiros e lobistas de plantão e até mesmo bem intencionados militantes de causas dignas de respeito. Há pouco tempo, um assíduo articulista da imprensa carioca, dedicado à defesa de aplicações da engenharia genética e à regularização das culturas transgênicas no Brasil, rebatia com o seguinte raciocínio a posição contrária manifestada por um religioso:
“A sociedade poderia fazer um pacto: cientistas cuidam do saber, políticos do governo, artistas da cultura, religiosos do espírito”. [GRAZIANO, 2003]
Ora, há 40 anos, Herbert Marcuse destacava que diante do totalitarismo da sociedade capitalista – ainda nos estertores de sua versão moderna – a noção de ‘neutralidade’ da tecnologia não podia mais se sustentar.
“A tecnologia como tal não pode ser isolada do uso ao qual está fadada; a sociedade tecnológica é um sistema de dominação que opera já no conceito e construção das técnicas”. [MARCUSE, 1968]
De Marcuse para cá, esta tendência se confirmou e se intensificou. O professor Laymert Garcia dos Santos é um dos pensadores brasileiros mais atentos à questão das conseqüências ético-políticas da tecnociência. No prefácio do livro Politizar as novas tecnologias [SANTOS, 2003], ele manifesta a impressão de que os anos 90 marcam o momento em que a tecnosfera, ou segunda natureza, passou a preponderar em relação à natureza, anulando de vez a concepção puramente utilitária que se tinha da tecnologia. A origem destas transformações remonta ao pós-guerra e aos anos 60-70, mas é nos 90 que a disseminação dos computadores e da Internet e os avanços da biotecnologia alcançam reconfigurar as percepções e práticas dos indivíduos e da sociedade. A potência das máquinas passa a se exercer sobre toda a vida e nossa existência é cada vez mais modulada pela aceleração tecnológica.
“O acesso à tecnologia tornou-se tão vital que hoje a inclusão social e a própria sobrevivência passam obrigatoriamente pela capacidade que indivíduos e populações têm de se inserir no mundo das máquinas e de acompanhar as ondas de evolução tecnológica”. [SANTOS, 2003: 10]
Garcia dos Santos constata que ninguém, nem mesmo o mais isolado e refratário dos povos indígenas, consegue hoje ficar fora da globalização, a qual seria inconcebível sem as novas tecnologias. Até os excluídos e os que não querem participar têm de jogar o jogo. Mesmo assim, prevalece a idéia ingênua de que a tecnologia ‘nos serve’. Por mais importante que seja este aspecto utilitário, ele não é tudo. E o que extrapola a função de uso da tecnologia fica invisível. O perigo está exatamente aí. Como se defender ou fugir de uma ameaça que não se vê?
Percorrendo uma trilha de reflexão que atravessa os rastros do pensamento marcuseano, o professor Garcia dos Santos destaca que a centralidade da tecnologia tem sido pouco problematizada e que a crítica não foi capaz de convencer a sociedade da necessidade de discussão da questão tecnológica em toda a sua complexidade. Ele propõe a politização radical do debate sobre a tecnologia e suas relações com a ciência e o capital, trazendo para toda a sociedade uma questão que o establishment quer restrita aos Estados e às corporações globais. As opções tecnológicas devem ser encaradas pela sociedade como de interesse público e cabe à política tratar a tecnociência como seu objeto de crítica por excelência.
Em um dos capítulos de Politizar as novas tecnologias, Garcia dos Santos transcreve entrevista de Vandana Shiva, cientista indiana e combatente ambientalista. O texto, intitulado A nova colonização genética, foi publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, em 7/4/1996. Ela ensina que toda sociedade tem tecnologia como meio de atender necessidades e aspirações humanas. O problema é que na sociedade contemporânea a tecnologia foi alçada à condição de fim e objetivo da aspiração humana. Em vez de ser avaliada pelos valores humanos, a tecnologia é que passou a ditar a condição humana.
“Já não se perguntava mais quais seriam os impactos sociais, culturais e ecológicos da introdução em larga escala de uma tecnologia específica, se ela era desejável ou imprópria. A tecnologia não precisava mais ser adaptada à sociedade e à natureza; passou-se a esperar que a sociedade e a natureza se adaptassem à tecnologia; e para essa adaptação impositiva e violenta, nenhum custo social e ecológico foi considerado excessivo”. [SHIVA, 2003: 75]
Outro capítulo do livro é a transcrição da palestra Consumindo o futuro, realizada em janeiro de 2000 e publicada também na Folha de S. Paulo, em 27/2/200. Nela, Garcia dos Santos avança na avaliação dos resultados da revolução tecnocientífica dos últimos anos. Os benefícios não chegam à maior parte da humanidade. A lógica da sobrevivência se aguçou. O darwinismo social tornou-se mais perverso com a introdução da competência tecnológica. Passou-se a atribuir uma superioridade incontestável a essa ‘nova classe’, conferindo-lhe ares de ‘outra humanidade’. Isso abriria espaço para o ‘melhoramento genético’ das elites, talvez sob aplausos de entusiastas da biotecnologia.
Ele indaga o que ocorre além do mundo dos excluídos. O que se passa com a sociedade dos incluídos? A aliança entre tecnociência e economia e o profetizado fim da política tiram dos incluídos a condição de cidadãos e os reduzem a consumidores. A identidade social passa a se afirmar na esfera do consumo, enquanto crescem a incerteza quanto ao futuro e a ameaça de exclusão. Mas o professor Garcia dos Santos não se alinha com os pessimistas. Por mais intensa que seja a devoração do tempo, o capitalismo não dá conta do futuro. Não há porque se deprimir porque o jogo não acabou e nunca acaba.
Cabe aqui, a título de ilustração da configuração prática dessa discussão sobre a centralidade da tecnociência, mais uma incursão nos acontecimentos do Brasil do presente. Encontra-se hoje em tramitação no Congresso Nacional o projeto da Lei de Biossegurança, que regulamenta a pesquisa e o uso de organismos geneticamente modificados no país. O primeiro relator do projeto, deputado Aldo Rebelo (atual ministro da Coordenação Política), propôs a criação de um imposto sobre a comercialização destes produtos para a constituição de um fundo para financiar o aprimoramento tecnológico de atividades e culturas tipicamente utilizadas por agricultores familiares e produtos da cesta básica, desenvolvidos por universidades e entidades públicas. O objetivo é fazer chegar de forma mais direta aos pequenos agricultores os benefícios materiais da nova tecnologia.
A proposta de Rebelo fora ridicularizada pelo economista Paulo Rabelo de Castro, um dos expoentes nacionais do neoliberalismo, em artigo publicado no jornal O Globo em 8/12/2003:
“Imagina se a moda pega! Teríamos, de uma hora para outra, impostos gravando tudo que parecesse com progresso tecnológico, de certo em benefício dos ‘pequenos’. Exemplo: a Embraer desenvolve uma aeronave com características especialmente competitivas para pousos e decolagens. Imposto nela, criando-se um fundo para compra de passagem aérea para paulistanos sem praia que queiram visitar as do Nordeste. Outra idéia interessante: alguém na Fiocruz desenvolve um OGM que produz repelência ao Aedes aegypti, o temível mosquito da dengue. Se patentear e vender, será taxado para ajudar na compra de mosquiteiros para uso em regiões infestadas”. [CASTRO, 2003]
Parece evidente que a virulência desta manifestação contra a proposta de taxação dos transgênicos transcende o âmbito restrito ao projeto em questão e remete a uma discussão mais ampla. Trata-se da lógica econômica que não admite qualquer interferência nas fontes de lucro do sistema e nem mesmo referências à destinação e repartição destes ganhos. Mas, por que não falar seriamente do financiamento dos grandes programas sociais, do combate à fome e do salário social, considerando a tributação direta dos lucros gerados pelas novas tecnologias? Este tema deve ser encarado de frente em razão da absoluta centralidade da tecnociência no sistema produtivo e em toda a vida contemporânea e futura.
Se os ‘economistas burgueses’ e os capitalistas protegem o tema da distribuição dos ganhos da tecnociência, a própria filosofia mantém certa reverência quando se trata de refletir sobre a totalizante presença da técnica na vida humana. No contexto da reflexão sobre a relação entre técnica e sociedade, Bruno Latour e Laurent Bibard [LATOUR & BIBARD] chamam atenção para a tradicional reserva da filosofia em relação à questão, apesar do impacto e do interesse da humanidade por cada revolução ou novidade tecnológica. A própria filosofia crítica oscila entre tecnofilia ou tecnofobia. Ora a técnica é neutra, um mero instrumento, ora ela engendra um monstro, o sistema técnico autônomo, sem nenhum fim humano. Um afirma que basta trocar o homem que domina a técnica para que ela sirva doce e comportadamente à sociedade. Mal conduzida a técnica é perversa, bem conduzida ela é neutra. Outro se assusta com a autonomia da técnica. O mito da técnica que enlouquece e domina o homem é o prolongamento da neutralidade instrumental. O Dr. Frankenstein tenta sem sucesso ser mestre de sua criatura.
“De totalmente dominadas, as técnicas se tornam totalmente dominates (...) No primeiro caso, o sujeito moral se crê mestre; no segundo, ele se crê escravo e se lamenta. Em ambos os casos, a filosofia crítica não consegue repensar a partilha entre o sujeito moral e o objeto neutro, puro instrumento – ela prefere manter no seu coração o rico tesouro do valor moral, que só ela conserva no meio do reino dos objetos indiferenciados e sem finalidade”. [LATOUR & BIBARD]
Latour e Bibard perguntam se, depois de milhões de anos, homens e técnicas não se mestiçaram. Sim, a própria técnica é um reflexo dos valores morais do sujeito e este se constitui e se amplia pela técnica. Homens e máquinas trocam propriedades (capacidades, valores etc.). É a própria forma do homem que está em questão na técnica. Poder e técnica se confundem. Não basta trocar os homens que se servem da técnica para reorientar as forças produtivas numa direção libertadora. Também não parece simples pensar a mudança da natureza da própria técnica. A distinção entre homem e técnica é estéril. Para não cair na paralisia nem na impotência cabe reconhecer que homem e técnica se mestiçam e se hibridam. Não há como escapar da técnica, da mesma forma que não há como fugir do mundo. Alguns homens de poder, apoiados pela técnica, dominam a multidão. E todos tendem a se reconciliar para que o híbrido homem-máquina domine a natureza. Para Latour e Bibard, o esforço crítico sobre a técnica não foi longe porque ela é sinônimo de poder. É, portanto, a própria idéia de dominação que está em questão. Isso produz um ‘paradoxo tecnófobo’: a técnica deve sr atacada porque capitaliza o poder; mas ao mesmo tempo, porque faz sistema, ela paralisa o mundo inteiro e torna impossível toda ação crítica.
Fica claro, portanto, que a construção do futuro terá de atravessar a discussão sobre a centralidade da tecnociência. Ela é necessária para evitar que crítica e prática tombem paralisadas pelo poder aparentemente incomensurável da aliança entre capital e ciência, deixando o capitalismo sozinho ‘dar conta do futuro’ e, provavelmente, alcançar a própria destruição, levando tudo e todos juntos.
Negri nos ajuda a confiar em outro destino quando pergunta, nas Cinco lições, o que significa ‘antipoder’ na sociedade da globalização imperial. Ele propõe que o verdadeiro antipoder tem de evitar movimentar-se em um plano puramente nacional e fugir da absorção pelo novo ‘constitucionalismo imperial’, ou seja, terá de se manifestar para além da representação política nacional e não se deixar constituir como uma ‘nova sociedade civil’ dentro das regras imperiais. O que fazer, então? Primeiro, ele responde, é preciso construir resistências a partir de baixo, pelo enraizamento nas situações sociais e produtivas. Trata-se de desestruturar, por meio de uma resistência militante, o poder dominante onde ele se acumula, se centraliza e de onde declara sua hegemonia. Segundo, essas lutas precisam encontrar uma coligação mundial, uma dimensão de circulação global. A proposta de repartição dos ganhos da tecnociência e a demanda por um salário social parecem atender a ambas condições.

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