1 – Resistência ao Império
Biopoder e biopolítica
Partindo das análises de Foucault sobre o biopoder, feitas no decorrer da década de 70, Simone Sobral Sampaio pergunta, na introdução de sua dissertação de doutorado [SAMPAIO, 2003: 3], se é possível falar em resistência hoje, quando a sociedade inteira encontra-se absorvida pela lógica do capital e sob um processo de controle, que conjuga a gestão política, econômica e social dos corpos.
Ela assinala que o biopoder, na visão foucaultiana, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que vem ocorrendo graças à sujeição dos corpos ao aparelho de produção e à subordinação das populações aos processos econômicos. Simone Sampaio lembra que, para Foucault, o regime de poder contemporâneo engloba todos os campos sociais e age em níveis micro e macro, produzindo máxima eficácia política e deixando poucas lacunas para atitudes de resistência ou de desobediência. Trata-se de “um regime de poder que funciona por conexões, encaminhamentos, complementaridades, delimitações em um emaranhado jogo de apoio”. [SAMPAIO, 2003: 3] O capital, assim, mantém sua hegemonia, não de modo conservador, mas por transformações ininterruptas.
Desde Marx, que a crítica indaga sobre a capacidade de autopreservação e expansão do capitalismo através de mudanças contínuas. No início dos anos 60, o tema foi analisado por um dos expoentes da escola de Frankfurt [10], Herbert Marcuse, cujo pensamento exerceu importante influência nos movimentos de rebeldia e contestação que marcaram aquele período. Marcuse procurou avançar na crítica ao capitalismo, radicalizando a análise da força totalizante do sistema de dominação e apontando sua capacidade de acomodação de opostos e integração de contrários. Ao mesmo tempo em que reformulava um dos pilares da teoria original de Marx – aquele que sustenta o fim do capitalismo em decorrência do acirramento de suas próprias contradições – ele denunciava o estado de paralisia do criticismo naquele momento e colocava a questão da tecnociência no centro da discussão sobre a sociedade industrial avançada.
“O progresso técnico, espalhado por um inteiro sistema de dominação e coordenação, cria formas de vida (e de poder) que surgem para reconciliar as forças que se opõem ao sistema e para derrotar e refutar todo protesto em nome das perspectivas históricas de liberdade, contra o estorvo e a dominação.” [MARCUSE, 1968].
A acomodação de interesses – mesmo opostos e conflitantes – para evitar a mudança social parece ser, segundo o filósofo frankfurtiano, a realização mais singular da sociedade industrial avançada. O desenvolvimento capitalista modificou a estrutura e a função das duas grandes classes que se opunham desde a origem do sistema – burguesia e proletariado – ao ponto de deixarem de ser agentes de transformação histórica. O interesse de preservação e otimização do status quo passou a unir os antigos antagonistas. Este diagnóstico de Marcuse antecede, como sabemos, algumas décadas a derrocada da União Soviética, a abertura chinesa ao capitalismo e a hegemonia do pensamento neoliberal. Ele observa que na falta de agentes perceptíveis de mudança social, a crítica é empurrada para a abstração, pensamento e ação não se encontram e a discussão de alternativas passa ao campo da especulação.
Marcuse afirmava em 1964 que, apesar da paralisia da crítica, a mudança qualitativa é mais urgente do que nunca e necessária a toda a sociedade, a cada um de seus membros, mesmo aos supostos beneficiários do sistema, que une crescente produtividade com crescente destruição e cria prosperidade e miséria sem precedentes. O fato de ser aceito pela maioria das pessoas não torna o sistema menos irracional. Os homens têm de distinguir seus interesses imediatos dos interesses reais. É exatamente a consciência da necessidade de mudar que o sistema trata de reprimir, “usando a conquista científica da natureza para a conquista científica do homem.” [MARCUSE, 1968] O aparato produtivo tende a se tornar totalitário na medida em que determina ocupações, habilidades, atitudes e, também, necessidades e aspirações individuais. A tecnologia, segundo Marcurse, cria formas mais amenas e efetivas de controle e coesão social. Esta tendência totalitária espalha-se por todo o mundo, mesmo pelas regiões pré-industriais, e cria similaridades entre capitalismo e comunismo.
Quase 30 anos depois – portanto a uma distância maior do apogeu da forma industrial capitalismo e já no alvorecer de sua versão pós-fordista – os comentários de Deleuze ao pensamento de Foucault referendam um dos aspectos do diagnóstico marcusiano, aquele que se refere ao acirramento da tendência totalitária do sistema. A dominação torna-se absoluta, exercendo-se não apenas pelo confinamento, característico da sociedade disciplinar, mas em todos os lugares e todos os momentos. Não há, porém, nada de ameno no processo. Em entrevista a Negri para a primeira edição de Futur Antérieur, em 1990, Deleuze assinala que Foucault foi dos primeiros pensadores anunciar a passagem da sociedade disciplinar, mais típica da forma moderna do capitalismo, para o regime de controle, predominante na vida atual. Deleuze destaca que o novo regime é ainda mais opressor:
“Face às formas próximas de um controle incessante em meio aberto, é possível que os confinamentos mais duros nos pareçam pertencer a um passado delicioso e benevolente”. [DELEUZE, 1992: 216]
Referindo-se na mesma entrevista a Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia, escrito com Guattari, Deleuze admite que ambos continuam marxistas, “talvez de maneiras diferentes”, e revela que “a análise do capitalismo como sistema imanente que não pára de expandir seus próprios limites” é o que mais lhes interessa em Marx. Mas propõem uma interpretação não-dialética dos termos e do significado das contradições na sociedade contemporânea:
“Mille plateaux indica muitas direções, sendo estas as três principais: primeiro, uma sociedade parece definir-se menos por suas contradições que por suas linhas de fuga, ela foge por todos os lados, e é muito interessante tentar acompanhar em tal ou qual momento as linhas de fuga que se delineiam. (...) Há uma outra direção em Mille plateaux, que já não consiste apenas em considerar as linhas de fuga mais do que as contradições, porém as minorias de preferência às classes. Enfim, uma terceira direção, que consiste em buscar um estatuto para as ‘máquinas de guerra’, que não seriam definas de modo algum pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos: os movimentos revolucionários (...), mas também os movimentos artísticos são máquinas de guerra.” [DELEUZE, 1992: 212]
Negri pergunta a Deleuze nesta entrevista se as sociedades de controle suscitarão formas de resistência capazes de abrir oportunidades a um comunismo concebido como ‘organização transversal de indivíduos livres’. Estamos no limiar de uma revolução subjetiva e, portanto, radicalmente transformadora da sociedade? Deleuze responde um ambíguo “Não sei, talvez”. Descarta que isso dependa da retomada da palavra pelas minorias, porque a comunicação estaria totalmente apodrecida pelo dinheiro. A resistência dependeria mais de criação que de comunicação. Para Deleuze, os processos de subjetivação só valem quando “escapam tanto dos saberes constituídos como dos poderes dominantes”, mesmo se “engendram novos poderes ou tornam a integrar novos saberes”. É nesse “preciso momento que eles têm efetivamente uma espontaneidade rebelde”. Ele prefere falar em “novos tipos de acontecimento” que de processos de subjetivação:
“É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle”. [DELEUZE, 1992: 218]
Negri e Hardt empreendem em Império esforço de sistematização de um grande conjunto de contribuições à interpretação crítica do capitalismo contemporâneo. Eles retomam a linha de pensamento de Foucault, Deleuze e Guattari em que o biopoder se refere à produção social e à reprodução da própria vida, constituindo o paradigma de poder na sociedade de controle. Na sociedade disciplinar, os efeitos das tecnologias biopolíticas eram parciais. A disciplina conseguiu fixar os indivíduos dentro de instituições, mas não pôde consumi-los no âmbito das atividades produtivas. A invasão disciplinar correspondeu à resistência do indivíduo. No reino do biopoder, ao contrário, todo o corpo social é abarcado e a sociedade reage como um só corpo. O poder se realiza como um controle que abarca a consciência e os corpos da população e se exerce na totalidade das relações sociais. Negri e Hardt observam que o “poder só pode adquirir comando efetivo sobre a vida total da população quando se torna função integral, vital, que todos os indivíduos abraçam e reativam por sua própria vontade”. [HARDT & NEGRI, 2001: 43]
Na passagem da disciplina para o controle, o capitalismo teria alcançado, então, o que sempre buscou, ou seja, a relação cada vez mais intensa de mútua implicação de todas as forças sociais. Mas abre simultaneamente novas e poderosas possibilidades de resistência. Negri e Hardt destacam que essa análise avança em relação ao processo descrito por Marx, na dimensão econômica, da passagem da subordinação formal para a subordinação real do trabalho ao capital. Também é mais ampla que as investigações realizadas no âmbito da escola de Frankfurt de uma transição relacionada à subordinação da cultura e das relações sociais à figura totalitária do Estado ou ao projeto iluminista.
“A análise da subordinação real, entendida como envolvendo não apenas a dimensão econômica ou apenas a dimensão social da sociedade mas também o próprio bios social, e quando está atenta às modalidades de disciplinaridade e/ou controle, desfaz a figura linear e totalitária do desenvolvimento capitalista. A sociedade civil é absorvida pelo Estado, mas a conseqüência disso é uma explosão dos elementos previamente coordenados e mediados na sociedade civil. As resistências deixam de ser marginais e tornam-se ativas no centro de uma sociedade que se abre em redes; os pontos individuais são singularizados em mil platôs.” [HARDT & NEGRI, 2001: 44]
Os autores de Império assinalam que Deleuze e Guattari desenvolveram as reflexões originais de Foucault, identificando no biopoder possibilidades de resistência semelhantes às dos regimes que o precederam, mas agora tornadas mais potentes como resultado do paradoxo de um poder que envolve todos os elementos da vida e perde com isso sua capacidade de mediar diferentes forças sociais.
“O que Foucault implicitamente construiu (e Deleuze e Guattari tornaram explícito) é portanto o paradoxo de um poder que, à medida que unifica e envolve todos os elementos da vida social (perdendo com isso sua capacidade de mediar diferentes forças sociais), nesse exato momento revela um novo contexto, um novo milieu de máxima pluralidade e incontornável singularização – um mileu do evento.” [HARDT & NEGRI, 2001: 44]
Esta é, para Negri e Hardt, a grande novidade da situação imperial. “O poder imperial já não pode resolver o conflito de forças sociais pelo esquema mediador que substitui os termos do conflito. Os conflitos sociais que constituem o político confrontam-se diretamente, sem qualquer espécie de mediação”. [HARDT & NEGRI, 2001: 417] Os autores concluem, então, que o potencial de revolução é maior no Império que nos regimes modernos de poder porque cria uma alternativa à máquina de comando. Esta alternativa é a multidão, o conjunto de todos os explorados e subjugados, que se opõe ao Império sem mediadores.
No livro Cinco lições sobre Império, Negri se propõe a desenvolver aspectos da metodologia de pesquisa que conduziu ao conceito de Império. Um dos campos visados é a distinção entre biopoder e biopolítica e a análise de sua gênese. Este é um dos aspectos em que Negri aproxima Marx e Foucault.
“Fala-se em biopoder quando o Estado expressa comando sobre a vida por meio de suas tecnologias e de seus dispositivos de poder. Contrariamente, fala-se em biopolítica quando a análise crítica do comando é feita do ponto de vista das experiências de subjetivação e de liberdade, isto é, de baixo”. [NEGRI, 2003: 107]
O biopoder, portanto, é a expressão maior da mutação no capitalismo que ocorre hoje, incluindo áreas de desenvolvimento do capital e da sociedade. Porém, é a definição de biopolítica, com a emergência de uma nova subjetividade, que mais interessa sob a ótica da ontologia social.
“Fala-se em biopolítica ou de contexto biopolítico pensando no complexo das resistências e nas ocasiões e nas medidas de choque entre dispositivos sociais de poder”. [NEGRI, 2003: 108]
Negri adverte que é preciso cuidado na utilização destes conceitos, lembrando que eles foram usados na Itália, no começo dos anos 80, em contraposição aos conflitos de classe. Na própria França, após a morte de Foucault, a direita deles se utilizou contra as práticas sociais do Welfare. Os conceitos giram e dão voltas e que é preciso relacioná-los à estrutura de sentido que genealogicamente os conota. Assim, diz Negri, biopolítica deve ser entendida como uma extensão da luta de classe.
Avançando na análise da gênese do biopolítico, Negri o relaciona à idéia de ‘general intellect’, ou ‘intelecto coletivo’ esboçada por Marx nos Grundrisse. ‘General intellect’ é uma antevisão da forma de organização das forças produtivas na fase superior ou final do capitalismo, em que o trabalho passa a ser imaterial (dependente das energias intelectuais e científicas que o constituem) e a força de trabalho se transforma em intelectualidade de massa.
A biopolítica estaria ligada à corporificação do ‘general intellect’, definindo a nova qualidade do trabalho na sociedade pós-industrial. Negri cita o livro de Christian Marazzi, Il posto dei calzini (O lugar das meias), para mostrar que este ‘novo trabalho’ equaciona o paradoxo do chamado não-trabalho das mulheres, que ocupa todos os momentos da vida e é composto por conhecimento, afeto e pelas relações. Deleuze e Guattari também associam o surgimento da biopolítica às características de afetividade, relações, flexibilidade temporal e mobilidade espacial do trabalho que o nosso tempo começa a conhecer.
Negri assinala que os movimentos biopolíticos (resistência), relacionados ao aumento da mobilidade do trabalho e às migrações não são apenas negativos, não querem somente fugir da miséria ou da tirania, mas buscam também a liberdade e o caminho da riqueza, emprego, invenção e da centralidade do trabalho imaterial.
Trabalho imaterial e subjetividade
O conceito de biopolítica está ligado, portanto, à nova caracterização do trabalho produtivo, composto de conhecimento e afeto, dispondo de grande mobilidade geográfica e intersetorial. O operário profissional e o operário-massa das primeiras fases do capitalismo dão lugar agora ao trabalhador imaterial. Recorrendo a uma interpretação positiva do conceito de ‘general intellect’, contido nos Grundrisse, Negri traça o percurso da subjetividade operária plantada no trabalho imaterial e no saber técnico-científico, desde a fase do operário-massa até situar-se agora como hegemonia produtiva no capitalismo imperial, dotada de potência revolucionária.
No artigo Trabalho imaterial e subjetividade, Negri e Lazzarato desenvolvem a tese de que “o ciclo do trabalho imaterial é pré-constituído por uma força de trabalho social e autônoma, capaz de organizar o próprio trabalho e as próprias relações com a empresa” e “nenhuma organização científica do trabalho pode predeterminar esta capacidade e a capacidade produtiva social”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 27] Mesmo a subordinação dos espaços de autonomia e organização do trabalho imaterial às grandes indústrias, no âmbito do modo de produção pós-fordista, não muda, mas reafirma a nova qualidade do trabalho, que tende a tornar-se explicitamente hegemônico. Não somente o trabalho imaterial tende a tornar-se preponderante, mas também a ‘intelectualidade de massa’, ou seja, a força de trabalho da sociedade pós-industrial, pode transformar-se em um sujeito social e politicamente hegemônico.
Como Marx anteviu nos Grundrisse para a fase de maior desenvolvimento da ‘grande indústria’, a criação de riqueza passa a depender cada vez menos do tempo e da quantidade de trabalho isolado imediato na produção e mais da potência de toda a atividade social. Esta potência depende, por sua vez, do progresso da ciência e da tecnologia. O motor da riqueza passa a ser a apropriação da produtividade geral do homem, da sua compreensão e domínio sobre a natureza, através de sua existência como corpo social. Dito pelo próprio Marx, é o desenvolvimento do indivíduo social que se apresenta como o grande pilar de sustentação da produção de riqueza.
"Na medida, entretanto, em que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva se torna menos dependente do tempo de trabalho e do quanto de trabalho empregados, que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que por sua vez - sua poderosa eficácia - não guarda relação alguma com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende bem mais do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação desta ciência à produção. (...) O trabalhador... se apresenta ao lado do processo de produção, em lugar de ser seu agente principal. Nesta transformação o que aparece como pilar fundamental da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato executado pelo homem, nem o tempo que este trabalha, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio da mesma graças à sua existência como corpo social; em uma palavra, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se funda a riqueza atual, aparece como uma base miserável comparado com este fundamento, recém desenvolvido, criado pela grande indústria mesma. Tão pronto como o trabalho em sua forma imediata cessa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem que deixar, de ser sua medida e portanto o valor de troca [deixa de ser a medida] do valor de uso. O mais-trabalho da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos cessa de sê-lo para o desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano. Com isso, desmorona a produção fundada no valor de troca, e ao processo de produção imediato se lhe cancela a forma da necessidade imposta e do antagonismo. Desenvolvimento livre das individualidades, e por isso não redução do tempo de trabalho necessário com vistas a por mais-trabalho, mas em geral redução do trabalho necessário da sociedade a um mínimo, ao qual corresponde então à formação artística, científica, etc., dos indivíduos graças ao tempo que se tornou livre e aos meios criados para todos". [MARX, 1997]
Cabe aqui assinalar que Marx atribui, no processo histórico, a cada coisa, tanto um valor de uso (a utilidade para o seu possuidor) como um valor de troca (a relação de medida entre as coisas ou mercadorias, definida pela quantidade ou tempo de trabalho necessário para a sua produção). O valor de uso, como Negri observa nas Cinco Lições, é algo ‘congênito’ à coisa, enquanto o valor de troca deriva das relações sociopolíticas nos modos de produção. Um exemplo é a força de trabalho, que originalmente era puro valor de uso e depois tornou-se mercadoria, ou seja, valor de troca no mercado.
É interessante, ainda neste ponto, seguir a interpretação de Euclides André Mance no seu texto comparativo dos Grundrisse e O Capital [MANCE, 1997]. Marx descreve um movimento em que o capitalismo vai engendrando a sua própria dissolução. Isso ocorreria da seguinte forma: Graças ao desenvolvimento das forças produtivas, em razão da ciência produzida no tempo de não-trabalho, o tempo de trabalho deixa de ser a medida da riqueza. Esta medida passa a ser o ‘disposable time’, isto é, o tempo livre em que, além de outras coisas, se produz ciência e arte. Mas como manter alguma unidade real de valor para avaliar a mercadoria, se o tempo de trabalho vivo não é mais a sua fonte e se a medida de riqueza passa a ser o ‘disposable time’? Frente a este problema, Marx argumentará que o capitalista – lutando contra a perda de referência do valor – insiste em reduzir as forças sociais criadas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo ao tempo de trabalho gasto na produção da mercadoria. Caberia dizer que é nesse movimento que o capitalismo vai consumindo a si próprio. Voltando aos Grundrisse:
"O capital mesmo é a contradição em processo, [pelo fato de] que tende a reduzir a um mínimo o tempo de trabalho, ao passo que por outro lado põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. Diminui pois o tempo de trabalho na forma de tempo de trabalho necessário, para aumentá-lo na forma do trabalho excedente; põe, portanto, em medida crescente, o trabalho excedente como condição - questão de vida e de morte - do necessário. Por um lado desperta à vida todos os poderes da ciência e da natureza, assim como o da cooperação e do intercâmbio sociais, para fazer que a criação da riqueza seja (relativamente) independente do tempo de trabalho empregado nela. Por outro lado, se propõe medir com o tempo de trabalho essas gigantescas forças sociais criadas de tal sorte a reduzi-las aos limites requeridos para que o valor já criado se conserve como valor. As forças produtivas e as relações sociais... aparecem ao capital unicamente como meios, e não são para ele mais que meios para produzir, fundando-se em sua base mesquinha. De fato, contudo, constituem as condições materiais para fazer saltar essa base pelos ares. ‘Uma nação é verdadeiramente rica quando em vez de 12 horas se trabalham 6. Wealth [riqueza] não é disposição de tempo de mais-trabalho’ (riqueza efetiva), ‘mas disposable time, à parte do tempo usado na produção imediata, para cada indivíduo e toda a sociedade’ [The Source and Remedy, etc., 1821, p. 6]” [MARX, 1997] [11]
Segundo Negri e Lazzarato, estas páginas dos Grundrisse definem a tendência geral de um paradoxo do capital, que é, reduzir a força de trabalho a ‘capital fixo’, subordinando-a sempre mais ao processo produtivo, e, ao mesmo tempo, demonstrar, através desta subordinação total, que o ator fundamental do processo produtivo é ‘o saber social geral’.
“É sobre esta base que a questão da subjetividade pode ser colocada como o faz Marx, isto é, como questão relativa à transformação radical do sujeito na sua relação com a produção. Esta relação não é mais uma relação de simples subordinação ao capital. Ao contrário, esta relação se põe em termos de independência com relação ao tempo de trabalho imposto pelo capital”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 30]
Portanto, quando o controle capitalista se torna totalitário, o empreendimento capitalista vê as suas características constitutivas tornarem-se puramente formais. Os autores de Trabalho imaterial e subjetividade assinalam que o capital “exercita hoje sua função de controle e vigilância do ‘externo’ do processo produtivo, porque o conteúdo do processo pertence sempre mais a outro modo de produção, à cooperação social do trabalho imaterial”. [LAZZRATO & NEGRI: 31] A época em que o processo produtivo dependia do capitalista é superada e o trabalho é que passa a definir o capitalista.
Negri e Lazzarato identificam nas manifestações dos estudantes de 1968, nos movimentos operários que irromperam a partir dessas manifestações e nos movimentos feministas, exemplos de lutas reveladoras da ‘nova composição de classe’ correspondente à centralidade do trabalho imaterial.
“É em torno de maio de 68 que acontece o verdadeiro deslocamento epistemológico. Esta revolução, que não se assemelha a nenhum modelo revolucionário conhecido, produz uma fenomenologia que implica toda uma nova ‘metafísica’ dos poderes e dos sujeitos. Os focos de resistência e de revolta são ‘múltiplos’, ‘heterogêneos’, ‘transversais’ em relação à organização do trabalho e às divisões sociais. A definição da relação com o poder é subordinada à ‘constituição de si’ como sujeito social”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 33]
O artigo Trabalho imaterial e subjetividade também recoloca a questão dos antagonismos na sociedade pós-industrial em termos não-dialéticos. Se o trabalho torna-se imaterial, se a sua hegemonia se manifesta no ‘general intellect’ e se desse processo resultam novos sujeitos sociais independentes e autônomos, a contradição entre esta nova subjetividade e o domínio capitalista deixa de ser dialética e passa a ser alternativa.
“Quando dizemos que essa nova força de trabalho não pode ser definida no interior de uma relação dialética, queremos dizer que a relação que esta tem com o capital não é somente antagonista, ela está além do antagonismo, é alternativa, constitutiva de uma realidade social diferente. (...) O velho antagonismo das sociedades industriais estabelecia uma relação contínua, mesmo se de oposição, entre os sujeitos antagonistas e, como conseqüência, imaginava a passagem de uma situação de poder dada àquela da vitória das forças antagonistas como uma ‘transição’. Nas sociedades pós-industriais, onde o ‘general intellect’ é hegemônico, não há mais lugar para o conceito de ‘transição’, mas somente para o conceito de ‘poder constituinte’ como expressão radical do novo. A constituição antagonista, portanto, não se determina mais a partir dos dados da relação capitalista, mas da ruptura com ela; não a partir do trabalho assalariado, mas da sua dissolução; não sob as bases da figura do trabalho, mas daquelas do não-trabalho”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 36]
É nesse sentido que Negri e Lazzarato afirmam que a emergência do trabalho imaterial e a mudança subjetiva conseqüente modificam o próprio conceito de revolução. Não se perdem as características de ruptura radical, mas esta ruptura fica subordinada às novas regras de constituição ontológica dos sujeitos, à sua potência.
Nas Cinco lições sobre Império, Negri aprofunda o tema da potência revolucionária da emergência do trabalho imaterial. Ele diz que as transformações que ocorrem hoje no trabalho constituem a esperada novidade radical, o evento de nossa época. É a capacidade de conhecer que nos permite hoje ter acesso à produção e, por meio dela, à reprodução do ser social. Negri observa que é preciso, portanto, desenvolver uma ‘ontologia do trabalho imaterial’ ou uma ‘ontologia do ser imaterial’. Ele assinala que estamos assistindo ao ‘fim da dialética do instrumento’, entendendo-se por ‘instrumentalização’ o fato de que o capital oferecia o instrumento ao trabalhador. Agora o instrumento é o próprio cérebro humano.
“Quando o cérebro humano se reapropria do instrumento de trabalho, então o capital não tem mais a possibilidade de articular o comando sobre o instrumento: e portanto a dialética instrumental se exaure”. [NEGRI, 2003: 95]
Quando se fala que esta nova qualidade do trabalho é reafirmada apesar da subordinação de seus espaços de autonomia e cooperação ao capitalismo contemporâneo, deve-se entender que a continuidade da exploração e mesmo o seu agravamento – com o retorno no pós-fordismo de práticas de exploração pré-fordistas – não deve obscurecer a compreensão da descontinuidade das formas de organização e comando do grande capital no âmbito do trabalho imaterial.
No ensaio Trabalho autônomo, produção por meio da linguagem e General Intellect, [LAZZARATO, 2001] Maurizio Lazzarato procura estabelecer uma relação de complementaridade, em torno da noção de trabalho imaterial, entre diversas contribuições no âmbito do pensamento ‘operaísta’ e da autonomia italiana. Uma destas teses refere-se ao ‘trabalho autônomo de terceira geração’, de Sergio Bologna, que destaca aspectos sociológicos, econômicos e financeiros do trabalho na era pós-fordista. Analisa, no contexto do pós-fordismo, as empresas individuais, o trabalho autônomo consorciado (cooperativo), o ‘artesanato’, o ‘self-employment’, as pequenas empresas que prestam serviços para grandes empresas e outros fenômenos correlatos. Assinala, também, o prolongamento da jornada de trabalho, a degradação das condições laborais e a composição da renda segundo condições pré-fordistas.
Parece, segundo Lazzarato, que a preocupação de Bologna é salientar que, frente ao lado liberatório e inovativo destacado pelas teorizações do ‘general intellect’, também existe um lado obscuro e trágico. O pós-fordismo não é apenas ‘produção de mercadorias por meio da linguagem’, intelectualidade de massa e comunicação, mas também o retorno a forma de exploração pré-fordistas. Trabalha-se mais, em piores condições de trabalho e sem garantias trabalhistas. Os trabalhadores autônomos são mais explorados que os operários fordistas.
Lazzarato observa que a exaltação deste aspecto ‘material’ da exploração pós-fordista traz o risco de passar para segundo plano a qualificação geral da relação social pós-fordista e do trabalho, do qual o ‘trabalho autônomo’ é apenas uma parte. “A continuidade da exploração não deve nos impedir de apreender a descontinuidade de suas formas de organização e de comando”. [LAZZARATO, 2001: 93] Entre o trabalho autônomo da época pré-fordista e o atual há uma socialização-intensificação da cooperação, dos saberes, das subjetividades dos trabalhadores e dos dispositivos tecnológicos e organizativos que redeterminam os termos da questão.
A nova ‘autonomização’ não tem relação com aquela contra a qual o ‘taylorismo’ se constituiu. Agora, o trabalho autônomo possui grande capacidade de cooperação, gestão e inovação oraganizativa e comercial, o que se traduz em capacidade empreendedora. Além disso, ele existe somente sob a forma de redes e fluxos. A sua espacilidade é o território e a metrópole; sua temporalidade coincide com o tempo de vida. É impossível defini-lo fora da dimensão coletiva e da vida. Enfim, ele é dotado de capacidades biopolíticas, no conceito foucaultiano, ou seja, é capaz de abrir alternativas políticas.
Ainda segundo Lazzarato, quando Bologna trata do trabalho que ‘produz serviços para as empresas’, o significado da nova ‘autonomização’ fica ainda mais clara. Ela não é organizada somente para reduzir custos e flexibilizar a produção, mas fundamentalmente para capturar as ‘externalidades’ positivas que a cooperação produz e organiza espontaneamente.
Hoje, a autonomia do trabalho não é somente intensificação da exploração. É, sobretudo, a intensificação dos níveis de cooperação, saber e comunidade, que esvazia e deslegitima o comando do empreendedor capitalista e do Estado. Lazzarato deduz das conclusões de Bologna que “o capitalismo sempre foi uma coexistência de diversos modos de produção, comandados, organizados e explorados pelo mais desterritorializado (abstrato, segundo a definição marxista) dentre eles”. [LAZZARATO, 2001: 95] É o que ocorre no modo de produção pós-fordista, que compreende também formas de trabalho servil e pré-capitalista. Mas são exatamente os elementos mais desterritorializados (abstratos) da nova natureza do trabalho que capturam todos os outros.
Surge, então, a figura do ‘empreendedor político’, que se diferencia do empreendedor shumpeteriano. A capacidade do ‘empreendedor político’ não consiste apenas na exploração de uma tecnologia, do comércio ou do trabalho. Sua qualificação é conseguir colocar em seqüência os segmentos de trabalho que não estão em continuidade, recuperando assim as externalidades produzidas pela cooperação produtiva e pela comunidade.
Lazzarato conclui que o modo de produção pós-fordista não pode ser definido apenas como ‘produção flexível’, aumento da jornada e difusão territorial do trabalho, entre outras características. É, sobretudo, a ativação de diferentes modos de produção, materiais e imateriais, com a convivência, portanto, de diferentes subjetividades (pré-fordista e pós-fordista). Tudo isso é comandado, porém, pelas formas mais abstratas e dinâmicas do trabalho e da subjetividade. “Como sempre, não é o peso quantitativo de um modo de produção ou de uma relação social, mas a sua posição estratégica e tendencial na divisão internacional do trabalho, que define o dinamismo e a hegemonia dela”. [LAZZARATO, 2001: 106] É assim, segundo Lazzarato, que o ‘biopolítico’ pode impactar a tendência do desenvolvimento do capitalismo e, também, ‘exprimir’ a multiplicidade das formas de vida, produção e subjetividade do proletariado mundial.
Multidão e poder constituinte
Negri e Hardt identificam no Império, como vimos, um potencial maior de revolução que outros regimes porque apresenta a alternativa da multidão, o conjunto de todos os explorados e subjugados, o proletariado mundial, que constitui alternativa à máquina de comando capitalista.
A gênese do conceito de multidão é examinada nas Cinco lições, em particular na terceira delas, que trata dos sujeitos políticos. Negri lembra que Espinosa define multidão como uma multiplicidade de singularidades que se situam em alguma ordem. Antes, o conceito estava relacionado a uma falta de ordem; a multidão era apresentada como multiplicidade de sujeitos sem princípio formativo, uma matéria a ser formada. Com Espinosa, “o conceito de multidão assume sentido próprio na medida em que falta uma idéia de causalidade externa”. [NEGRI, 2003: 139]
Negri parte em seguida para estabelecer a diferenciação entre os conceitos de multidão e de povo. Ele recorre a Maquiavel para identificar na Renascença italiana as origens do pensamento republicano e de novo a Espinosa, na segunda metade do século 17, em pleno esplendor do absolutismo monárquico, para encontrar a emergência de um pensamento subvertor que leva ao conceito de absolutismo da multidão associado ao absolutismo da democracia. “A idéia de multidão e a de democracia absoluta tornar-se-ão um único projeto no pensamento republicano”. [NEGRI, 2003: 141]
O passo seguinte é a definição política de subjetividade como produto de um conjunto de relações. Novamente, Negri vai a Espinosa e depois a Nietzsche, Deleuze e Foucault. A definição de sujeito deixa de repousar em elementos metafísicos. Para o trabalho da multidão, entendida como produto de singularidades, qualquer elemento de autoconsciência é secundário. As singularidades mantêm força própria, mas há uma dinâmica relacional, que as constrói e, ao mesmo tempo, constrói o todo.
Negri observa que a corrente republicana do pensamento moderno não reconhece a centralidade do individualismo apropriador. É Hobbes que o coloca no centro do processo constitutivo da modernidade, pensando os indivíduos como seres egoístas e apropriadores. Somente o contrato poderia assegurar o equilíbrio social e evitar a guerra permanente. Mas o contrato consiste em translação, ou seja, alienação do poder dos indivíduos para um poder transcendente, soberano, capaz de assegurar paz e segurança aos indivíduos e à propriedade.
O conceito de povo aparece na modernidade como uma produção do Estado. Povo, neste sentido, é o conjunto de indivíduos que abdicam de sua liberdade tendo como compensação a garantia da propriedade. A liberdade torna-se um direito público, subjetivo, e é o Estado que a garante. “Esse conceito de Estado, de povo e dos direitos que seguem perdurou até hoje, exatamente como a idéia de soberania”. [NEGRI, 2003: 143-144]
Na última fase da modernidade, as definições de multidão resultaram quase sempre da impossibilidade de conformá-la no conceito de povo. A complexidade da estrutura de classe do capitalismo impôs a idéia de multidão como massa, um conjunto confuso e indistinto, embora capaz de uma força de resistência.
Na era pós-moderna, o conceito de multidão remete a uma multiplicidade de subjetividades, ou singularidades. Pode-se falar em multidão como classe social não-operária, a força de trabalho do modo de produção em que o trabalho imaterial é hegemônico. Assim, a força de trabalho torna-se capaz de acabar com a dialética da servidão e da soberania por meio da reapropriação dos instrumentos de trabalho e da cooperação. Quando o conceito de multidão é confrontado com as novas formas de organização do trabalho e da sociedade – e não simplesmente em termos políticos, como ocorria nas correntes republicanas entre os séculos 16 e 18 – passa a ser reconstruído como “indicador material, ontológico, de uma nova fase do desenvolvimento do capitalismo, da sociedade e – o que mais importa – da subjetividade”. [NEGRI, 2003: 144-145]
Negri chega, então, à questão da forma política da expressão da multidão, uma forma que não seja de alienação de sua potência produtiva nem da liberdade dos sujeitos. Superar a alienação – característica marcante da modernidade – pressupõe superar também a representação, com a translação da potência do indivíduo ao soberano moderno (Estado) associada à idéia de consenso como metáfora desse processo.
Nesse ponto, ele analisa o conceito de comum e o diferencia das idéias de identidade ou consenso. Assinala que multidão não é encontro da identidade nem exaltação da diferença, mas é o reconhecimento de que pode existir ‘algo comum’ além das identidades e diferenças. Esta é outra novidade em relação às teorias políticas tradicionais. Multidão é um conjunto de singularidades, em que ‘conjunto’ é uma comunidade de diferenças e ‘singularidade’ é produção de diferença.
Resta compreender a definição de multidão como conceito forte. Negri parte da distinção entre obstáculo e limite. Temos obstáculo quando há alguma coisa fora que nos impede de ir além. Limite é algo totalmente negativo, que impede qualquer atividade. A multidão se subestima, percebendo-se apenas como obstáculo e não como limite insuperável da soberania; quando entende que pode se expressar somente pela destruição do soberano, o inimigo. Nas teorias democrático-radicais e na concepção tradicional do comunismo, o obstáculo é algo a ser destruído, por ser sempre demasiado forte. Instaurar a ditadura do proletariado é uma saída modesta, segundo Negri, porque se trata ainda de uma imagem do Estado, embora invertida.
O problema, portanto, é tornar indestrutível a força da multidão. Deve-se entendê-la negativamente como limite da soberania; assim, ela se apresenta positivamente como um conjunto de singularidades que se relaciona sempre a um obstáculo. A multidão não precisa de ditadura e da legitimidade de um Estado invertido para começar o processo revolucionário. Observando que o limite da soberania está na relação entre quem comanda e quem obedece, Negri conclui que “o poder da multidão não consiste tanto na possibilidade de destruir essa relação, mas de esvaziá-la, de eliminá-la, de fazê-la desaparecer por meio de uma negação radical”. [NEGRI, 2003: 154] Ele abre caminho para uma ontologia da multidão, assinalando que a relação se apresenta à soberania primeiro como obstáculo e depois como limite, que ela não pode eliminar, porque a constitui. A potência da multidão, ao contrário, pode eliminar a relação soberana, porque a produção da multidão constitui o ser.
Reconhecer que a multidão é limite da soberania e não simplesmente obstáculo a ela significa reconhecer também sua potência constituinte. Por estar a multidão totalmente implantada no novo paradigma produtivo – com a hegemonia do trabalho imaterial e cooperativo – o comum que a caracteriza é produtivo e constituinte. Segundo Negri, o poder constituinte é a efetividade da luta, a potência da multidão que inventa e constitui novas realidades. “Se, de fato, multidão é um conjunto de singularidades agentes, a potência constituinte somente poderá ser a ação do telos comum da multidão. O poder constituinte é a dinâmica organizacional da multidão, o seu fazer-se”. [NEGRI, 2003: 157]
Partindo das análises de Foucault sobre o biopoder, feitas no decorrer da década de 70, Simone Sobral Sampaio pergunta, na introdução de sua dissertação de doutorado [SAMPAIO, 2003: 3], se é possível falar em resistência hoje, quando a sociedade inteira encontra-se absorvida pela lógica do capital e sob um processo de controle, que conjuga a gestão política, econômica e social dos corpos.
Ela assinala que o biopoder, na visão foucaultiana, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que vem ocorrendo graças à sujeição dos corpos ao aparelho de produção e à subordinação das populações aos processos econômicos. Simone Sampaio lembra que, para Foucault, o regime de poder contemporâneo engloba todos os campos sociais e age em níveis micro e macro, produzindo máxima eficácia política e deixando poucas lacunas para atitudes de resistência ou de desobediência. Trata-se de “um regime de poder que funciona por conexões, encaminhamentos, complementaridades, delimitações em um emaranhado jogo de apoio”. [SAMPAIO, 2003: 3] O capital, assim, mantém sua hegemonia, não de modo conservador, mas por transformações ininterruptas.
Desde Marx, que a crítica indaga sobre a capacidade de autopreservação e expansão do capitalismo através de mudanças contínuas. No início dos anos 60, o tema foi analisado por um dos expoentes da escola de Frankfurt [10], Herbert Marcuse, cujo pensamento exerceu importante influência nos movimentos de rebeldia e contestação que marcaram aquele período. Marcuse procurou avançar na crítica ao capitalismo, radicalizando a análise da força totalizante do sistema de dominação e apontando sua capacidade de acomodação de opostos e integração de contrários. Ao mesmo tempo em que reformulava um dos pilares da teoria original de Marx – aquele que sustenta o fim do capitalismo em decorrência do acirramento de suas próprias contradições – ele denunciava o estado de paralisia do criticismo naquele momento e colocava a questão da tecnociência no centro da discussão sobre a sociedade industrial avançada.
“O progresso técnico, espalhado por um inteiro sistema de dominação e coordenação, cria formas de vida (e de poder) que surgem para reconciliar as forças que se opõem ao sistema e para derrotar e refutar todo protesto em nome das perspectivas históricas de liberdade, contra o estorvo e a dominação.” [MARCUSE, 1968].
A acomodação de interesses – mesmo opostos e conflitantes – para evitar a mudança social parece ser, segundo o filósofo frankfurtiano, a realização mais singular da sociedade industrial avançada. O desenvolvimento capitalista modificou a estrutura e a função das duas grandes classes que se opunham desde a origem do sistema – burguesia e proletariado – ao ponto de deixarem de ser agentes de transformação histórica. O interesse de preservação e otimização do status quo passou a unir os antigos antagonistas. Este diagnóstico de Marcuse antecede, como sabemos, algumas décadas a derrocada da União Soviética, a abertura chinesa ao capitalismo e a hegemonia do pensamento neoliberal. Ele observa que na falta de agentes perceptíveis de mudança social, a crítica é empurrada para a abstração, pensamento e ação não se encontram e a discussão de alternativas passa ao campo da especulação.
Marcuse afirmava em 1964 que, apesar da paralisia da crítica, a mudança qualitativa é mais urgente do que nunca e necessária a toda a sociedade, a cada um de seus membros, mesmo aos supostos beneficiários do sistema, que une crescente produtividade com crescente destruição e cria prosperidade e miséria sem precedentes. O fato de ser aceito pela maioria das pessoas não torna o sistema menos irracional. Os homens têm de distinguir seus interesses imediatos dos interesses reais. É exatamente a consciência da necessidade de mudar que o sistema trata de reprimir, “usando a conquista científica da natureza para a conquista científica do homem.” [MARCUSE, 1968] O aparato produtivo tende a se tornar totalitário na medida em que determina ocupações, habilidades, atitudes e, também, necessidades e aspirações individuais. A tecnologia, segundo Marcurse, cria formas mais amenas e efetivas de controle e coesão social. Esta tendência totalitária espalha-se por todo o mundo, mesmo pelas regiões pré-industriais, e cria similaridades entre capitalismo e comunismo.
Quase 30 anos depois – portanto a uma distância maior do apogeu da forma industrial capitalismo e já no alvorecer de sua versão pós-fordista – os comentários de Deleuze ao pensamento de Foucault referendam um dos aspectos do diagnóstico marcusiano, aquele que se refere ao acirramento da tendência totalitária do sistema. A dominação torna-se absoluta, exercendo-se não apenas pelo confinamento, característico da sociedade disciplinar, mas em todos os lugares e todos os momentos. Não há, porém, nada de ameno no processo. Em entrevista a Negri para a primeira edição de Futur Antérieur, em 1990, Deleuze assinala que Foucault foi dos primeiros pensadores anunciar a passagem da sociedade disciplinar, mais típica da forma moderna do capitalismo, para o regime de controle, predominante na vida atual. Deleuze destaca que o novo regime é ainda mais opressor:
“Face às formas próximas de um controle incessante em meio aberto, é possível que os confinamentos mais duros nos pareçam pertencer a um passado delicioso e benevolente”. [DELEUZE, 1992: 216]
Referindo-se na mesma entrevista a Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia, escrito com Guattari, Deleuze admite que ambos continuam marxistas, “talvez de maneiras diferentes”, e revela que “a análise do capitalismo como sistema imanente que não pára de expandir seus próprios limites” é o que mais lhes interessa em Marx. Mas propõem uma interpretação não-dialética dos termos e do significado das contradições na sociedade contemporânea:
“Mille plateaux indica muitas direções, sendo estas as três principais: primeiro, uma sociedade parece definir-se menos por suas contradições que por suas linhas de fuga, ela foge por todos os lados, e é muito interessante tentar acompanhar em tal ou qual momento as linhas de fuga que se delineiam. (...) Há uma outra direção em Mille plateaux, que já não consiste apenas em considerar as linhas de fuga mais do que as contradições, porém as minorias de preferência às classes. Enfim, uma terceira direção, que consiste em buscar um estatuto para as ‘máquinas de guerra’, que não seriam definas de modo algum pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos: os movimentos revolucionários (...), mas também os movimentos artísticos são máquinas de guerra.” [DELEUZE, 1992: 212]
Negri pergunta a Deleuze nesta entrevista se as sociedades de controle suscitarão formas de resistência capazes de abrir oportunidades a um comunismo concebido como ‘organização transversal de indivíduos livres’. Estamos no limiar de uma revolução subjetiva e, portanto, radicalmente transformadora da sociedade? Deleuze responde um ambíguo “Não sei, talvez”. Descarta que isso dependa da retomada da palavra pelas minorias, porque a comunicação estaria totalmente apodrecida pelo dinheiro. A resistência dependeria mais de criação que de comunicação. Para Deleuze, os processos de subjetivação só valem quando “escapam tanto dos saberes constituídos como dos poderes dominantes”, mesmo se “engendram novos poderes ou tornam a integrar novos saberes”. É nesse “preciso momento que eles têm efetivamente uma espontaneidade rebelde”. Ele prefere falar em “novos tipos de acontecimento” que de processos de subjetivação:
“É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle”. [DELEUZE, 1992: 218]
Negri e Hardt empreendem em Império esforço de sistematização de um grande conjunto de contribuições à interpretação crítica do capitalismo contemporâneo. Eles retomam a linha de pensamento de Foucault, Deleuze e Guattari em que o biopoder se refere à produção social e à reprodução da própria vida, constituindo o paradigma de poder na sociedade de controle. Na sociedade disciplinar, os efeitos das tecnologias biopolíticas eram parciais. A disciplina conseguiu fixar os indivíduos dentro de instituições, mas não pôde consumi-los no âmbito das atividades produtivas. A invasão disciplinar correspondeu à resistência do indivíduo. No reino do biopoder, ao contrário, todo o corpo social é abarcado e a sociedade reage como um só corpo. O poder se realiza como um controle que abarca a consciência e os corpos da população e se exerce na totalidade das relações sociais. Negri e Hardt observam que o “poder só pode adquirir comando efetivo sobre a vida total da população quando se torna função integral, vital, que todos os indivíduos abraçam e reativam por sua própria vontade”. [HARDT & NEGRI, 2001: 43]
Na passagem da disciplina para o controle, o capitalismo teria alcançado, então, o que sempre buscou, ou seja, a relação cada vez mais intensa de mútua implicação de todas as forças sociais. Mas abre simultaneamente novas e poderosas possibilidades de resistência. Negri e Hardt destacam que essa análise avança em relação ao processo descrito por Marx, na dimensão econômica, da passagem da subordinação formal para a subordinação real do trabalho ao capital. Também é mais ampla que as investigações realizadas no âmbito da escola de Frankfurt de uma transição relacionada à subordinação da cultura e das relações sociais à figura totalitária do Estado ou ao projeto iluminista.
“A análise da subordinação real, entendida como envolvendo não apenas a dimensão econômica ou apenas a dimensão social da sociedade mas também o próprio bios social, e quando está atenta às modalidades de disciplinaridade e/ou controle, desfaz a figura linear e totalitária do desenvolvimento capitalista. A sociedade civil é absorvida pelo Estado, mas a conseqüência disso é uma explosão dos elementos previamente coordenados e mediados na sociedade civil. As resistências deixam de ser marginais e tornam-se ativas no centro de uma sociedade que se abre em redes; os pontos individuais são singularizados em mil platôs.” [HARDT & NEGRI, 2001: 44]
Os autores de Império assinalam que Deleuze e Guattari desenvolveram as reflexões originais de Foucault, identificando no biopoder possibilidades de resistência semelhantes às dos regimes que o precederam, mas agora tornadas mais potentes como resultado do paradoxo de um poder que envolve todos os elementos da vida e perde com isso sua capacidade de mediar diferentes forças sociais.
“O que Foucault implicitamente construiu (e Deleuze e Guattari tornaram explícito) é portanto o paradoxo de um poder que, à medida que unifica e envolve todos os elementos da vida social (perdendo com isso sua capacidade de mediar diferentes forças sociais), nesse exato momento revela um novo contexto, um novo milieu de máxima pluralidade e incontornável singularização – um mileu do evento.” [HARDT & NEGRI, 2001: 44]
Esta é, para Negri e Hardt, a grande novidade da situação imperial. “O poder imperial já não pode resolver o conflito de forças sociais pelo esquema mediador que substitui os termos do conflito. Os conflitos sociais que constituem o político confrontam-se diretamente, sem qualquer espécie de mediação”. [HARDT & NEGRI, 2001: 417] Os autores concluem, então, que o potencial de revolução é maior no Império que nos regimes modernos de poder porque cria uma alternativa à máquina de comando. Esta alternativa é a multidão, o conjunto de todos os explorados e subjugados, que se opõe ao Império sem mediadores.
No livro Cinco lições sobre Império, Negri se propõe a desenvolver aspectos da metodologia de pesquisa que conduziu ao conceito de Império. Um dos campos visados é a distinção entre biopoder e biopolítica e a análise de sua gênese. Este é um dos aspectos em que Negri aproxima Marx e Foucault.
“Fala-se em biopoder quando o Estado expressa comando sobre a vida por meio de suas tecnologias e de seus dispositivos de poder. Contrariamente, fala-se em biopolítica quando a análise crítica do comando é feita do ponto de vista das experiências de subjetivação e de liberdade, isto é, de baixo”. [NEGRI, 2003: 107]
O biopoder, portanto, é a expressão maior da mutação no capitalismo que ocorre hoje, incluindo áreas de desenvolvimento do capital e da sociedade. Porém, é a definição de biopolítica, com a emergência de uma nova subjetividade, que mais interessa sob a ótica da ontologia social.
“Fala-se em biopolítica ou de contexto biopolítico pensando no complexo das resistências e nas ocasiões e nas medidas de choque entre dispositivos sociais de poder”. [NEGRI, 2003: 108]
Negri adverte que é preciso cuidado na utilização destes conceitos, lembrando que eles foram usados na Itália, no começo dos anos 80, em contraposição aos conflitos de classe. Na própria França, após a morte de Foucault, a direita deles se utilizou contra as práticas sociais do Welfare. Os conceitos giram e dão voltas e que é preciso relacioná-los à estrutura de sentido que genealogicamente os conota. Assim, diz Negri, biopolítica deve ser entendida como uma extensão da luta de classe.
Avançando na análise da gênese do biopolítico, Negri o relaciona à idéia de ‘general intellect’, ou ‘intelecto coletivo’ esboçada por Marx nos Grundrisse. ‘General intellect’ é uma antevisão da forma de organização das forças produtivas na fase superior ou final do capitalismo, em que o trabalho passa a ser imaterial (dependente das energias intelectuais e científicas que o constituem) e a força de trabalho se transforma em intelectualidade de massa.
A biopolítica estaria ligada à corporificação do ‘general intellect’, definindo a nova qualidade do trabalho na sociedade pós-industrial. Negri cita o livro de Christian Marazzi, Il posto dei calzini (O lugar das meias), para mostrar que este ‘novo trabalho’ equaciona o paradoxo do chamado não-trabalho das mulheres, que ocupa todos os momentos da vida e é composto por conhecimento, afeto e pelas relações. Deleuze e Guattari também associam o surgimento da biopolítica às características de afetividade, relações, flexibilidade temporal e mobilidade espacial do trabalho que o nosso tempo começa a conhecer.
Negri assinala que os movimentos biopolíticos (resistência), relacionados ao aumento da mobilidade do trabalho e às migrações não são apenas negativos, não querem somente fugir da miséria ou da tirania, mas buscam também a liberdade e o caminho da riqueza, emprego, invenção e da centralidade do trabalho imaterial.
Trabalho imaterial e subjetividade
O conceito de biopolítica está ligado, portanto, à nova caracterização do trabalho produtivo, composto de conhecimento e afeto, dispondo de grande mobilidade geográfica e intersetorial. O operário profissional e o operário-massa das primeiras fases do capitalismo dão lugar agora ao trabalhador imaterial. Recorrendo a uma interpretação positiva do conceito de ‘general intellect’, contido nos Grundrisse, Negri traça o percurso da subjetividade operária plantada no trabalho imaterial e no saber técnico-científico, desde a fase do operário-massa até situar-se agora como hegemonia produtiva no capitalismo imperial, dotada de potência revolucionária.
No artigo Trabalho imaterial e subjetividade, Negri e Lazzarato desenvolvem a tese de que “o ciclo do trabalho imaterial é pré-constituído por uma força de trabalho social e autônoma, capaz de organizar o próprio trabalho e as próprias relações com a empresa” e “nenhuma organização científica do trabalho pode predeterminar esta capacidade e a capacidade produtiva social”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 27] Mesmo a subordinação dos espaços de autonomia e organização do trabalho imaterial às grandes indústrias, no âmbito do modo de produção pós-fordista, não muda, mas reafirma a nova qualidade do trabalho, que tende a tornar-se explicitamente hegemônico. Não somente o trabalho imaterial tende a tornar-se preponderante, mas também a ‘intelectualidade de massa’, ou seja, a força de trabalho da sociedade pós-industrial, pode transformar-se em um sujeito social e politicamente hegemônico.
Como Marx anteviu nos Grundrisse para a fase de maior desenvolvimento da ‘grande indústria’, a criação de riqueza passa a depender cada vez menos do tempo e da quantidade de trabalho isolado imediato na produção e mais da potência de toda a atividade social. Esta potência depende, por sua vez, do progresso da ciência e da tecnologia. O motor da riqueza passa a ser a apropriação da produtividade geral do homem, da sua compreensão e domínio sobre a natureza, através de sua existência como corpo social. Dito pelo próprio Marx, é o desenvolvimento do indivíduo social que se apresenta como o grande pilar de sustentação da produção de riqueza.
"Na medida, entretanto, em que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva se torna menos dependente do tempo de trabalho e do quanto de trabalho empregados, que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que por sua vez - sua poderosa eficácia - não guarda relação alguma com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende bem mais do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação desta ciência à produção. (...) O trabalhador... se apresenta ao lado do processo de produção, em lugar de ser seu agente principal. Nesta transformação o que aparece como pilar fundamental da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato executado pelo homem, nem o tempo que este trabalha, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio da mesma graças à sua existência como corpo social; em uma palavra, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se funda a riqueza atual, aparece como uma base miserável comparado com este fundamento, recém desenvolvido, criado pela grande indústria mesma. Tão pronto como o trabalho em sua forma imediata cessa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem que deixar, de ser sua medida e portanto o valor de troca [deixa de ser a medida] do valor de uso. O mais-trabalho da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos cessa de sê-lo para o desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano. Com isso, desmorona a produção fundada no valor de troca, e ao processo de produção imediato se lhe cancela a forma da necessidade imposta e do antagonismo. Desenvolvimento livre das individualidades, e por isso não redução do tempo de trabalho necessário com vistas a por mais-trabalho, mas em geral redução do trabalho necessário da sociedade a um mínimo, ao qual corresponde então à formação artística, científica, etc., dos indivíduos graças ao tempo que se tornou livre e aos meios criados para todos". [MARX, 1997]
Cabe aqui assinalar que Marx atribui, no processo histórico, a cada coisa, tanto um valor de uso (a utilidade para o seu possuidor) como um valor de troca (a relação de medida entre as coisas ou mercadorias, definida pela quantidade ou tempo de trabalho necessário para a sua produção). O valor de uso, como Negri observa nas Cinco Lições, é algo ‘congênito’ à coisa, enquanto o valor de troca deriva das relações sociopolíticas nos modos de produção. Um exemplo é a força de trabalho, que originalmente era puro valor de uso e depois tornou-se mercadoria, ou seja, valor de troca no mercado.
É interessante, ainda neste ponto, seguir a interpretação de Euclides André Mance no seu texto comparativo dos Grundrisse e O Capital [MANCE, 1997]. Marx descreve um movimento em que o capitalismo vai engendrando a sua própria dissolução. Isso ocorreria da seguinte forma: Graças ao desenvolvimento das forças produtivas, em razão da ciência produzida no tempo de não-trabalho, o tempo de trabalho deixa de ser a medida da riqueza. Esta medida passa a ser o ‘disposable time’, isto é, o tempo livre em que, além de outras coisas, se produz ciência e arte. Mas como manter alguma unidade real de valor para avaliar a mercadoria, se o tempo de trabalho vivo não é mais a sua fonte e se a medida de riqueza passa a ser o ‘disposable time’? Frente a este problema, Marx argumentará que o capitalista – lutando contra a perda de referência do valor – insiste em reduzir as forças sociais criadas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo ao tempo de trabalho gasto na produção da mercadoria. Caberia dizer que é nesse movimento que o capitalismo vai consumindo a si próprio. Voltando aos Grundrisse:
"O capital mesmo é a contradição em processo, [pelo fato de] que tende a reduzir a um mínimo o tempo de trabalho, ao passo que por outro lado põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. Diminui pois o tempo de trabalho na forma de tempo de trabalho necessário, para aumentá-lo na forma do trabalho excedente; põe, portanto, em medida crescente, o trabalho excedente como condição - questão de vida e de morte - do necessário. Por um lado desperta à vida todos os poderes da ciência e da natureza, assim como o da cooperação e do intercâmbio sociais, para fazer que a criação da riqueza seja (relativamente) independente do tempo de trabalho empregado nela. Por outro lado, se propõe medir com o tempo de trabalho essas gigantescas forças sociais criadas de tal sorte a reduzi-las aos limites requeridos para que o valor já criado se conserve como valor. As forças produtivas e as relações sociais... aparecem ao capital unicamente como meios, e não são para ele mais que meios para produzir, fundando-se em sua base mesquinha. De fato, contudo, constituem as condições materiais para fazer saltar essa base pelos ares. ‘Uma nação é verdadeiramente rica quando em vez de 12 horas se trabalham 6. Wealth [riqueza] não é disposição de tempo de mais-trabalho’ (riqueza efetiva), ‘mas disposable time, à parte do tempo usado na produção imediata, para cada indivíduo e toda a sociedade’ [The Source and Remedy, etc., 1821, p. 6]” [MARX, 1997] [11]
Segundo Negri e Lazzarato, estas páginas dos Grundrisse definem a tendência geral de um paradoxo do capital, que é, reduzir a força de trabalho a ‘capital fixo’, subordinando-a sempre mais ao processo produtivo, e, ao mesmo tempo, demonstrar, através desta subordinação total, que o ator fundamental do processo produtivo é ‘o saber social geral’.
“É sobre esta base que a questão da subjetividade pode ser colocada como o faz Marx, isto é, como questão relativa à transformação radical do sujeito na sua relação com a produção. Esta relação não é mais uma relação de simples subordinação ao capital. Ao contrário, esta relação se põe em termos de independência com relação ao tempo de trabalho imposto pelo capital”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 30]
Portanto, quando o controle capitalista se torna totalitário, o empreendimento capitalista vê as suas características constitutivas tornarem-se puramente formais. Os autores de Trabalho imaterial e subjetividade assinalam que o capital “exercita hoje sua função de controle e vigilância do ‘externo’ do processo produtivo, porque o conteúdo do processo pertence sempre mais a outro modo de produção, à cooperação social do trabalho imaterial”. [LAZZRATO & NEGRI: 31] A época em que o processo produtivo dependia do capitalista é superada e o trabalho é que passa a definir o capitalista.
Negri e Lazzarato identificam nas manifestações dos estudantes de 1968, nos movimentos operários que irromperam a partir dessas manifestações e nos movimentos feministas, exemplos de lutas reveladoras da ‘nova composição de classe’ correspondente à centralidade do trabalho imaterial.
“É em torno de maio de 68 que acontece o verdadeiro deslocamento epistemológico. Esta revolução, que não se assemelha a nenhum modelo revolucionário conhecido, produz uma fenomenologia que implica toda uma nova ‘metafísica’ dos poderes e dos sujeitos. Os focos de resistência e de revolta são ‘múltiplos’, ‘heterogêneos’, ‘transversais’ em relação à organização do trabalho e às divisões sociais. A definição da relação com o poder é subordinada à ‘constituição de si’ como sujeito social”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 33]
O artigo Trabalho imaterial e subjetividade também recoloca a questão dos antagonismos na sociedade pós-industrial em termos não-dialéticos. Se o trabalho torna-se imaterial, se a sua hegemonia se manifesta no ‘general intellect’ e se desse processo resultam novos sujeitos sociais independentes e autônomos, a contradição entre esta nova subjetividade e o domínio capitalista deixa de ser dialética e passa a ser alternativa.
“Quando dizemos que essa nova força de trabalho não pode ser definida no interior de uma relação dialética, queremos dizer que a relação que esta tem com o capital não é somente antagonista, ela está além do antagonismo, é alternativa, constitutiva de uma realidade social diferente. (...) O velho antagonismo das sociedades industriais estabelecia uma relação contínua, mesmo se de oposição, entre os sujeitos antagonistas e, como conseqüência, imaginava a passagem de uma situação de poder dada àquela da vitória das forças antagonistas como uma ‘transição’. Nas sociedades pós-industriais, onde o ‘general intellect’ é hegemônico, não há mais lugar para o conceito de ‘transição’, mas somente para o conceito de ‘poder constituinte’ como expressão radical do novo. A constituição antagonista, portanto, não se determina mais a partir dos dados da relação capitalista, mas da ruptura com ela; não a partir do trabalho assalariado, mas da sua dissolução; não sob as bases da figura do trabalho, mas daquelas do não-trabalho”. [LAZZARATO & NEGRI, 2001: 36]
É nesse sentido que Negri e Lazzarato afirmam que a emergência do trabalho imaterial e a mudança subjetiva conseqüente modificam o próprio conceito de revolução. Não se perdem as características de ruptura radical, mas esta ruptura fica subordinada às novas regras de constituição ontológica dos sujeitos, à sua potência.
Nas Cinco lições sobre Império, Negri aprofunda o tema da potência revolucionária da emergência do trabalho imaterial. Ele diz que as transformações que ocorrem hoje no trabalho constituem a esperada novidade radical, o evento de nossa época. É a capacidade de conhecer que nos permite hoje ter acesso à produção e, por meio dela, à reprodução do ser social. Negri observa que é preciso, portanto, desenvolver uma ‘ontologia do trabalho imaterial’ ou uma ‘ontologia do ser imaterial’. Ele assinala que estamos assistindo ao ‘fim da dialética do instrumento’, entendendo-se por ‘instrumentalização’ o fato de que o capital oferecia o instrumento ao trabalhador. Agora o instrumento é o próprio cérebro humano.
“Quando o cérebro humano se reapropria do instrumento de trabalho, então o capital não tem mais a possibilidade de articular o comando sobre o instrumento: e portanto a dialética instrumental se exaure”. [NEGRI, 2003: 95]
Quando se fala que esta nova qualidade do trabalho é reafirmada apesar da subordinação de seus espaços de autonomia e cooperação ao capitalismo contemporâneo, deve-se entender que a continuidade da exploração e mesmo o seu agravamento – com o retorno no pós-fordismo de práticas de exploração pré-fordistas – não deve obscurecer a compreensão da descontinuidade das formas de organização e comando do grande capital no âmbito do trabalho imaterial.
No ensaio Trabalho autônomo, produção por meio da linguagem e General Intellect, [LAZZARATO, 2001] Maurizio Lazzarato procura estabelecer uma relação de complementaridade, em torno da noção de trabalho imaterial, entre diversas contribuições no âmbito do pensamento ‘operaísta’ e da autonomia italiana. Uma destas teses refere-se ao ‘trabalho autônomo de terceira geração’, de Sergio Bologna, que destaca aspectos sociológicos, econômicos e financeiros do trabalho na era pós-fordista. Analisa, no contexto do pós-fordismo, as empresas individuais, o trabalho autônomo consorciado (cooperativo), o ‘artesanato’, o ‘self-employment’, as pequenas empresas que prestam serviços para grandes empresas e outros fenômenos correlatos. Assinala, também, o prolongamento da jornada de trabalho, a degradação das condições laborais e a composição da renda segundo condições pré-fordistas.
Parece, segundo Lazzarato, que a preocupação de Bologna é salientar que, frente ao lado liberatório e inovativo destacado pelas teorizações do ‘general intellect’, também existe um lado obscuro e trágico. O pós-fordismo não é apenas ‘produção de mercadorias por meio da linguagem’, intelectualidade de massa e comunicação, mas também o retorno a forma de exploração pré-fordistas. Trabalha-se mais, em piores condições de trabalho e sem garantias trabalhistas. Os trabalhadores autônomos são mais explorados que os operários fordistas.
Lazzarato observa que a exaltação deste aspecto ‘material’ da exploração pós-fordista traz o risco de passar para segundo plano a qualificação geral da relação social pós-fordista e do trabalho, do qual o ‘trabalho autônomo’ é apenas uma parte. “A continuidade da exploração não deve nos impedir de apreender a descontinuidade de suas formas de organização e de comando”. [LAZZARATO, 2001: 93] Entre o trabalho autônomo da época pré-fordista e o atual há uma socialização-intensificação da cooperação, dos saberes, das subjetividades dos trabalhadores e dos dispositivos tecnológicos e organizativos que redeterminam os termos da questão.
A nova ‘autonomização’ não tem relação com aquela contra a qual o ‘taylorismo’ se constituiu. Agora, o trabalho autônomo possui grande capacidade de cooperação, gestão e inovação oraganizativa e comercial, o que se traduz em capacidade empreendedora. Além disso, ele existe somente sob a forma de redes e fluxos. A sua espacilidade é o território e a metrópole; sua temporalidade coincide com o tempo de vida. É impossível defini-lo fora da dimensão coletiva e da vida. Enfim, ele é dotado de capacidades biopolíticas, no conceito foucaultiano, ou seja, é capaz de abrir alternativas políticas.
Ainda segundo Lazzarato, quando Bologna trata do trabalho que ‘produz serviços para as empresas’, o significado da nova ‘autonomização’ fica ainda mais clara. Ela não é organizada somente para reduzir custos e flexibilizar a produção, mas fundamentalmente para capturar as ‘externalidades’ positivas que a cooperação produz e organiza espontaneamente.
Hoje, a autonomia do trabalho não é somente intensificação da exploração. É, sobretudo, a intensificação dos níveis de cooperação, saber e comunidade, que esvazia e deslegitima o comando do empreendedor capitalista e do Estado. Lazzarato deduz das conclusões de Bologna que “o capitalismo sempre foi uma coexistência de diversos modos de produção, comandados, organizados e explorados pelo mais desterritorializado (abstrato, segundo a definição marxista) dentre eles”. [LAZZARATO, 2001: 95] É o que ocorre no modo de produção pós-fordista, que compreende também formas de trabalho servil e pré-capitalista. Mas são exatamente os elementos mais desterritorializados (abstratos) da nova natureza do trabalho que capturam todos os outros.
Surge, então, a figura do ‘empreendedor político’, que se diferencia do empreendedor shumpeteriano. A capacidade do ‘empreendedor político’ não consiste apenas na exploração de uma tecnologia, do comércio ou do trabalho. Sua qualificação é conseguir colocar em seqüência os segmentos de trabalho que não estão em continuidade, recuperando assim as externalidades produzidas pela cooperação produtiva e pela comunidade.
Lazzarato conclui que o modo de produção pós-fordista não pode ser definido apenas como ‘produção flexível’, aumento da jornada e difusão territorial do trabalho, entre outras características. É, sobretudo, a ativação de diferentes modos de produção, materiais e imateriais, com a convivência, portanto, de diferentes subjetividades (pré-fordista e pós-fordista). Tudo isso é comandado, porém, pelas formas mais abstratas e dinâmicas do trabalho e da subjetividade. “Como sempre, não é o peso quantitativo de um modo de produção ou de uma relação social, mas a sua posição estratégica e tendencial na divisão internacional do trabalho, que define o dinamismo e a hegemonia dela”. [LAZZARATO, 2001: 106] É assim, segundo Lazzarato, que o ‘biopolítico’ pode impactar a tendência do desenvolvimento do capitalismo e, também, ‘exprimir’ a multiplicidade das formas de vida, produção e subjetividade do proletariado mundial.
Multidão e poder constituinte
Negri e Hardt identificam no Império, como vimos, um potencial maior de revolução que outros regimes porque apresenta a alternativa da multidão, o conjunto de todos os explorados e subjugados, o proletariado mundial, que constitui alternativa à máquina de comando capitalista.
A gênese do conceito de multidão é examinada nas Cinco lições, em particular na terceira delas, que trata dos sujeitos políticos. Negri lembra que Espinosa define multidão como uma multiplicidade de singularidades que se situam em alguma ordem. Antes, o conceito estava relacionado a uma falta de ordem; a multidão era apresentada como multiplicidade de sujeitos sem princípio formativo, uma matéria a ser formada. Com Espinosa, “o conceito de multidão assume sentido próprio na medida em que falta uma idéia de causalidade externa”. [NEGRI, 2003: 139]
Negri parte em seguida para estabelecer a diferenciação entre os conceitos de multidão e de povo. Ele recorre a Maquiavel para identificar na Renascença italiana as origens do pensamento republicano e de novo a Espinosa, na segunda metade do século 17, em pleno esplendor do absolutismo monárquico, para encontrar a emergência de um pensamento subvertor que leva ao conceito de absolutismo da multidão associado ao absolutismo da democracia. “A idéia de multidão e a de democracia absoluta tornar-se-ão um único projeto no pensamento republicano”. [NEGRI, 2003: 141]
O passo seguinte é a definição política de subjetividade como produto de um conjunto de relações. Novamente, Negri vai a Espinosa e depois a Nietzsche, Deleuze e Foucault. A definição de sujeito deixa de repousar em elementos metafísicos. Para o trabalho da multidão, entendida como produto de singularidades, qualquer elemento de autoconsciência é secundário. As singularidades mantêm força própria, mas há uma dinâmica relacional, que as constrói e, ao mesmo tempo, constrói o todo.
Negri observa que a corrente republicana do pensamento moderno não reconhece a centralidade do individualismo apropriador. É Hobbes que o coloca no centro do processo constitutivo da modernidade, pensando os indivíduos como seres egoístas e apropriadores. Somente o contrato poderia assegurar o equilíbrio social e evitar a guerra permanente. Mas o contrato consiste em translação, ou seja, alienação do poder dos indivíduos para um poder transcendente, soberano, capaz de assegurar paz e segurança aos indivíduos e à propriedade.
O conceito de povo aparece na modernidade como uma produção do Estado. Povo, neste sentido, é o conjunto de indivíduos que abdicam de sua liberdade tendo como compensação a garantia da propriedade. A liberdade torna-se um direito público, subjetivo, e é o Estado que a garante. “Esse conceito de Estado, de povo e dos direitos que seguem perdurou até hoje, exatamente como a idéia de soberania”. [NEGRI, 2003: 143-144]
Na última fase da modernidade, as definições de multidão resultaram quase sempre da impossibilidade de conformá-la no conceito de povo. A complexidade da estrutura de classe do capitalismo impôs a idéia de multidão como massa, um conjunto confuso e indistinto, embora capaz de uma força de resistência.
Na era pós-moderna, o conceito de multidão remete a uma multiplicidade de subjetividades, ou singularidades. Pode-se falar em multidão como classe social não-operária, a força de trabalho do modo de produção em que o trabalho imaterial é hegemônico. Assim, a força de trabalho torna-se capaz de acabar com a dialética da servidão e da soberania por meio da reapropriação dos instrumentos de trabalho e da cooperação. Quando o conceito de multidão é confrontado com as novas formas de organização do trabalho e da sociedade – e não simplesmente em termos políticos, como ocorria nas correntes republicanas entre os séculos 16 e 18 – passa a ser reconstruído como “indicador material, ontológico, de uma nova fase do desenvolvimento do capitalismo, da sociedade e – o que mais importa – da subjetividade”. [NEGRI, 2003: 144-145]
Negri chega, então, à questão da forma política da expressão da multidão, uma forma que não seja de alienação de sua potência produtiva nem da liberdade dos sujeitos. Superar a alienação – característica marcante da modernidade – pressupõe superar também a representação, com a translação da potência do indivíduo ao soberano moderno (Estado) associada à idéia de consenso como metáfora desse processo.
Nesse ponto, ele analisa o conceito de comum e o diferencia das idéias de identidade ou consenso. Assinala que multidão não é encontro da identidade nem exaltação da diferença, mas é o reconhecimento de que pode existir ‘algo comum’ além das identidades e diferenças. Esta é outra novidade em relação às teorias políticas tradicionais. Multidão é um conjunto de singularidades, em que ‘conjunto’ é uma comunidade de diferenças e ‘singularidade’ é produção de diferença.
Resta compreender a definição de multidão como conceito forte. Negri parte da distinção entre obstáculo e limite. Temos obstáculo quando há alguma coisa fora que nos impede de ir além. Limite é algo totalmente negativo, que impede qualquer atividade. A multidão se subestima, percebendo-se apenas como obstáculo e não como limite insuperável da soberania; quando entende que pode se expressar somente pela destruição do soberano, o inimigo. Nas teorias democrático-radicais e na concepção tradicional do comunismo, o obstáculo é algo a ser destruído, por ser sempre demasiado forte. Instaurar a ditadura do proletariado é uma saída modesta, segundo Negri, porque se trata ainda de uma imagem do Estado, embora invertida.
O problema, portanto, é tornar indestrutível a força da multidão. Deve-se entendê-la negativamente como limite da soberania; assim, ela se apresenta positivamente como um conjunto de singularidades que se relaciona sempre a um obstáculo. A multidão não precisa de ditadura e da legitimidade de um Estado invertido para começar o processo revolucionário. Observando que o limite da soberania está na relação entre quem comanda e quem obedece, Negri conclui que “o poder da multidão não consiste tanto na possibilidade de destruir essa relação, mas de esvaziá-la, de eliminá-la, de fazê-la desaparecer por meio de uma negação radical”. [NEGRI, 2003: 154] Ele abre caminho para uma ontologia da multidão, assinalando que a relação se apresenta à soberania primeiro como obstáculo e depois como limite, que ela não pode eliminar, porque a constitui. A potência da multidão, ao contrário, pode eliminar a relação soberana, porque a produção da multidão constitui o ser.
Reconhecer que a multidão é limite da soberania e não simplesmente obstáculo a ela significa reconhecer também sua potência constituinte. Por estar a multidão totalmente implantada no novo paradigma produtivo – com a hegemonia do trabalho imaterial e cooperativo – o comum que a caracteriza é produtivo e constituinte. Segundo Negri, o poder constituinte é a efetividade da luta, a potência da multidão que inventa e constitui novas realidades. “Se, de fato, multidão é um conjunto de singularidades agentes, a potência constituinte somente poderá ser a ação do telos comum da multidão. O poder constituinte é a dinâmica organizacional da multidão, o seu fazer-se”. [NEGRI, 2003: 157]
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