Conclusão
A concomitância no mundo contemporâneo da capacidade sem precedentes da sociedade de produzir riqueza e do agravamento do ‘apartheid’ social em escala planetária propõe hoje a cada indivíduo uma condição ambivalente, de sentido ao mesmo tempo trágico e venturoso. Quem não está faminto, amedrontado pela ignorância ou humilhado pela miséria é beneficiário, mas também é vítima do sistema; está preso a seus valores e, ao mesmo tempo, é portador do modo de vida que se anuncia e é vetor de transformação. A multidão crescente de seres supérfluos e descartáveis é mantida em extrema pobreza e despojada de todo valor político, mas também é produtiva e constituinte, integrante do conjunto maior da multidão global. Pobres, explorados, subjugados, excluídos produzem o tempo todo, inventam novas realidades que antecipam o novo paradigma produtivo de flexibilidade temporal e mobilidade espacial, afetividade e cooperação. Integram a multiplicidade de singularidades do proletariado mundial, em que a potência de resistência ao Império é elemento constitutivo.
O agravamento da calamidade social do presente ocorre, portanto, no âmbito do processo de mudanças profundas na sociedade, que se materializa através das transformações no trabalho e na organização da produção e prenuncia uma nova subjetividade e novas formas de vida, bem como a organização social, a política e a economia, que possam lhes corresponder. Podemos estar vivendo o limiar de uma mudança de paradigma tão radical como foi a passagem do mundo medieval para a modernidade, com a emergência de novos valores e categorias de pensamento, outro léxico e a configuração de outra geografia. A grande diferença agora deverá ser a velocidade do processo.
Tudo está por ser feito, portanto. Assim é a vida humana. É absoluta tolice festejar o futuro, principalmente porque o devir não tem forma nem quando. Cabe, no máximo, comemorar as lutas do dia a dia, os acontecimentos enquanto acontecem. Mas é preciso, sobretudo, combater o niilismo oportunista, a condescendência existencial e a picaretagem intelectual da falta de esperança e de ação política.
Até agora, a sociedade do conhecimento segue regida pela lógica do mercado e os sinais de surgimento de uma sociedade pós-industrial ou pós-capitalista não bastam para aplacar as carências e angústias do presente. Muito ao contrário. Marilena Chauí, em palestra realizada em 2003 [CHAUÍ, 2003] observa que embora o conhecimento e a informação tenham se tornado forças produtivas, a hegemonia do capital financeiro em relação ao capital produtivo faz com que a informação prevaleça sobre o conhecimento. Como o capital financeiro opera com riquezas virtuais, cuja existência se reduz à informação, o poder econômico se baseia na posse de informações, que se tornam estratégicas e secretas, bloqueando poderes democráticos que também se baseiam no direito à informação. Assim, no presente, a chamada sociedade do conhecimento serve ao mercado, sobretudo o financeiro, e não propicia a ação política da sociedade civil.
Chauí destaca que a sociedade do conhecimento é inseparável da velocidade. Há uma acentuada redução do tempo entre a aquisição de conhecimento e sua aplicação tecnológica, a ponto da aplicação determinar o conteúdo da própria investigação científica. Ela cita que o conhecimento levou 1750 anos para se duplicar pela primeira vez, no início da era cristã; depois passou a duplicar-se a cada 150 anos, depois a cada 50 anos até contarmos agora este movimento em meses e dias. Mas questiona se a quantidade de descobertas está conseguindo transformar a estrutura das ciências, se a mudança epistemológica que ocorre hoje na química equivale, por exemplo, à passagem da alquimia para a química no século 17.
Na mesma palestra, ela remete à análise de David Harvey sobre a condição pós-moderna. Harvey associa os efeitos da acumulação flexível de capital – fragmentação da produção, hegemonia do capital financeiro, rotatividade extrema da mão-de-obra, obsolescência vertiginosa das qualificações do trabalho, exclusão social e política – a uma transformação sem precedentes na experiência do espaço e do tempo. Ele chama esta transformação de ‘compressão espaço-temporal’, isto é, a simultaneidade de dois fenômenos contrários engendrados pela globalização: de um lado, a fragmentação e dispersão espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos da tecnologia da informação, a compressão do espaço – tudo se passa aqui, sem distâncias, diferenças nem fronteiras – e a compressão do tempo – tudo se passa agora, sem passado e sem futuro. Mas o próprio autor adverte que “essas mudanças, quando confrontadas com as regras básicas de acumulação capitalista, mostram-se mais como transformações da aparência superficial do que como sinais do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova”. [HARVEY, 2003] Se, como sempre, tudo está por fazer, se tudo permanece incerto, a questão que prevalece também é a mesma de sempre: o que fazer? Que práxis pode se adequar ao momento em que o trabalho imaterial e o novo modo de produção se instalam mas não predominam, em que o novo sujeito está presente mas não é hegemônico? O que fazer enquanto a multidão não faz o evento? A resposta talvez esteja na construção também de um novo conceito de revolução. Não se trata mais de pensar a revolução como missão a ser cumprida e sim como devir revolucionário, constante, permanente, infindável. Na entrevista a Negri para a Futur Anterieur, em 1990, Deleuze dá o exemplo dos acontecimentos de Maio de 1968:
“Maio de 68 foi a manifestação, a irrupção de um devir em estado puro. Hoje está na moda denunciar os horrores da revolução. Nem mesmo é novidade, todo o romantismo inglês está repleto de uma reflexão sobre Cromwell muito análoga àquela que hoje se faz sobre Stálin. Dizem que as revoluções têm um mau futuro. Mas não param de misturar duas coisas, o futuro das revoluções na história e o devir revolucionário das pessoas. Nem sequer são as mesmas pessoas nos dois casos. A única oportunidade dos homens está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável”. [DELEUZE, 1992: 211]
Deleuze assinala que os processos de subjetivação só valem no momento em que têm uma espontaneidade rebelde. Não se trata de retorno ao ‘sujeito’, a uma instância dotada de deveres, poder e saber. Mais que de subjetivação, se poderia falar de novos tipos de acontecimentos, que não se explicam pelos estados de coisas que os suscitam ou nos quais tornam a cair. É o instante em que se elevam que se precisa agarrar. Deleuze conclui afirmando que acreditar no mundo é o que mais nos falta; é provocar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou de volume reduzidos. “É no nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo”. [DELEUZE, 1992: 218]
O que fazer de ‘o que fazer?, hoje – ou seja: o corpo do General Intellect, é um dos capítulos finais das Cinco lições. Nele, Negri discute o tema da ‘tomada do poder’ no marxismo revolucionário, à luz do legado teórico-político de Lênin, cuja obra teria sido alcançada só pela metade: conquistou o poder, mas não extinguiu o Estado. Negri pergunta o que seria a conquista do poder e a extinção do Estado num período histórico que vê (ou prevê) a hegemonia do capital no ‘general intellect’. Ou, dito de outra forma, como será possível construir o corpo subversivo do intelecto geral, fazendo da organização comunista a alavanca, o ponto de geração de novas corporalidades revolucionárias, a base da produção de subjetividade?
“Não acredito que possamos identificar a escolha do caminho possível: penso que somente um movimento de luta poderá decidi-lo. E, todavia, é certo que na perspectiva de amadurecimento do ‘General Intellect’ precisamos antecipar a experimentação. Porque somente dessa forma, opondo à história natural do capital aquelas contradições insolúveis que Marx inventou, a genealogia do ‘General Intellect’ será constituída como força subversiva. Definir o corpo do ‘General Intellect’ é, de fato, a mesma coisa que afirmar a potência dos sujeitos que o habitam, a violência da crise que sacode a sua ambigüidade, o choque de teleologias que o atravessam: e decidir de que lado estamos neste caos. (...) É uma constituição que nasce da militância de homens construídos no trabalho imaterial e cooperativo, decididos a viver como associação subversiva”. [NEGRI, 2003: 216] Mas, para Negri, não se trata somente de reconhecer uma nova realidade, mas de redescobrir a urgência da organização. O corpo está sempre localizado e é sempre no tempo. A produção de subjetividade necessita de determinações espaciais e temporais para ser eficaz. Para a Rússia (lugar e tempo), haverá para Lênin uma determinação absoluta: aqui, agora ou nunca mais. Quais são o espaço e o tempo possíveis da revolução para o proletariado imaterial hoje?
“Surgem muitas dificuldades ao reconhecer a dimensão espacial de um novo projeto leninista. Nós vivemos no Império e sabemos que qualquer iniciativa revolucionária que se movimente em espaços limitados (mesmo que fossem Estados-nação de grandes dimensões) não poderia ter continuidade. É claro, pois, que o único Palácio de Inverno hoje reconhecível é a White House! Difícil de ser atacada, não resta dúvida... Além disso, quanto mais o poder imperial toma força, tanto mais sua representação política torna-se complexa e integrada a nível mundial. (...) O que interessa em ‘Lênin além de Lênin’ é identificar praticamente aquele ponto da corrente imperial onde seja possível forçar a realidade. Ora, esse não é um ‘ponto fraco’ – não será mais assim: será, pelo contrário, aquele ponto onde são mais fortes a resistência, a insurreição, a hegemonia do ‘General Intellect’, em suma, o poder constituinte do novo proletariado”. [NEGRI, 2003: 217]
Negri chama de ‘kairòs’ (do grego ‘oportunidade’) a possibilidade de emergência do corpo do ‘general intellect’. Trata-se do instante de criação, da potência intempestiva de um evento, da flecha que o ‘general intellect’ desfere para reconhecer-se como corpo. Mas ele próprio pergunta o que isso significa. Diz que é preciso militância e experimentação a respeito deste ponto. Parece claro que o dispositivo leninista de intervenção num ponto fraco e num tempo crítico já não é eficaz. Somente onde o ‘partido da força de trabalho imaterial’ tem mais energia que as forças da exploração capitalista é possível um desenho de libertação. Negri retoma, aqui, a idéia de ‘democracia absoluta’, em Espinosa, aquela forma de governo que a multidão exerce sobre si mesma. Ela nada tem em comum com a teoria das formas de governo. ‘Democracia absoluta’ é um termo adequado à invenção de uma nova forma de liberdade, à produção de um povo em devir.
No aqui e agora, Negri preconiza que resistir é alargar as redes do saber e do agir ‘comuns’, contra a privatização do comando e da riqueza; significa romper as linhas da exploração e da exclusão.
É nesse plano, então, que cabe situar a demanda pelo ‘salário social’ e a discussão a respeito do seu financiamento e, portanto, da sua materialização. Trata-se de propor, debater, lutar e conquistar, mesmo que a demanda pareça impossível como deve ter ocorrido a quase todos que ouviram o senador Suplicy defender o seu projeto original há 14 anos e os que dizem hoje que não há recursos para cumprir a lei da renda mínima garantida, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República. E mesmo que a proposta seja ridicularizada, como o projeto do deputado Rebelo de taxar os lucros da venda de produtos geneticamente modificados. Uma frase atribuída ao Che parece bem adequada a esta situação: “Seja realista; exija o impossível!”.
Como vimos no capítulo ‘Pagar a conta’, é muito esclarecedor a respeito da viabilidade e do financiamento do salário social universal e incondicional o ensaio de Carlo Vercellone, Mutations du concept de travail productif et nouvelles normes de répartition. Fica demonstrado que a proposta é absolutamente legítima e ética não apenas sob a ótica social, mas também pela lógica econômica. Fica evidente, igualmente, a falácia da tese da limitação de recursos para a sua viabilização.
Pode-se perceber, assim, que da mesma forma que a causa da fome de milhões de pessoas não é a falta de alimentos (produzidos em abundância há muitas décadas) nem corresponde a qualquer lógica moral, a inexistência do salário social não decorre da escassez de dinheiro nem tampouco de qualquer imperativo ético. As duas questões são entrelaçadas e estão no plano das escolhas ao alcance da sociedade. O que é preciso é enfrentá-las e materializar as soluções.
Como estamos em um campo da especulação muito dinâmico, também cabe confrontar alguns acontecimentos do presente mais atual com as reflexões de Harvey e da professora Chauí sobre o estado da sociedade do conhecimento e o fato de que está submetida à lógica do mercado, bem como às dúvidas sobre os sinais de surgimento de uma nova ordem social, de produção e de vida. É possível que estes acontecimentos recentes prenunciem um novo ambiente para o debate e a tomada de decisões na sociedade global e ajudem a realizar o que pode parecer impossível: a socialização da riqueza correspondente à socialização do trabalho e da produção.
Desde Seattle, os fenômenos de resistência se multiplicam e não param de oferecer novidades e surpreender. A ‘nova sociedade civil’ se constitui globalmente e depressa, dispondo cada vez mais de meios tecnológicos para existir independentemente das instituições políticas e da mídia. Internet e telefones celulares permitem manifestações e acontecimentos locais e globais, de forma instantânea, autônoma e independente de comando. O exemplo mais recente de impacto mundial, ao qual já nos referimos, foi o uso maciço de mensagens via email e celulares nos últimos dias da campanha eleitoral na Espanha, após os atentados terroristas, em março deste ano. A mobilização instantânea e espontânea (aqui caberia também a palavra ‘intempestiva’) de milhões de pessoas inverteu (virou o jogo) em poucos dias a tendência do eleitorado, levando à derrota do primeiro-ministro José Maria Aznar, aliado da política militar-intervencionista de Bush. As conseqüências deste episódio repercutiram no enfraquecimento das forças de apoio mundial à intervenção americana no Iraque.
Estas manifestações parecem configurar uma resposta da multidão – com as armas da tecnologia – ao regime de controle contínuo, aberto e de comunicação instantânea, que passa a substituir no mundo atual – com as mesmas armas da tecnologia – as técnicas de confinamento da sociedade disciplinar.
É claro que o sistema capitalista – ou Império – se mobiliza para evitar ou absorver qualquer movimento de ocupação do ‘vazio da representação’ e de construção de espaços públicos livres para organização, diálogo e tomada de decisões. O sistema dominante atua para ‘estatizar’ as ongs e constitucionalizar a ‘nova sociedade civil’, enquanto constrói o campo teórico da limitação e neutralização dos movimentos intempestivos de base tecnológica. [15] Busca, com o mesmo propósito, absorver no mercado a potência das ‘fhash mobs’ (multidões repentinas) ou ‘smart mobs’ (multidões inteligentes), formadas por pessoas que se comunicam por telefone e pela internet e se encontram subitamente em determinado lugar para realizar um ato aparentemente inócuo. [16] Este fenômeno e as manifestações políticas da ‘nova sociedade civil’ têm em comum o fato de ocorrerem em grupos com interesses semelhantes, capazes de se comunicar e agir sem comando, graças às novas tecnologias de comunicação.
O capitalismo e o mercado nunca desistirão de dobrar a resistência e de tentar conciliar os contrários, apelando para a ideologia ou para as armas. Não resta à multidão outro destino, a não ser constituir e reconstituir sempre. Apostar no devir revolucionário é conquistar espaços ao poder e saber escapar de suas armadilhas. Revolução é uma fuga sem fim.
O agravamento da calamidade social do presente ocorre, portanto, no âmbito do processo de mudanças profundas na sociedade, que se materializa através das transformações no trabalho e na organização da produção e prenuncia uma nova subjetividade e novas formas de vida, bem como a organização social, a política e a economia, que possam lhes corresponder. Podemos estar vivendo o limiar de uma mudança de paradigma tão radical como foi a passagem do mundo medieval para a modernidade, com a emergência de novos valores e categorias de pensamento, outro léxico e a configuração de outra geografia. A grande diferença agora deverá ser a velocidade do processo.
Tudo está por ser feito, portanto. Assim é a vida humana. É absoluta tolice festejar o futuro, principalmente porque o devir não tem forma nem quando. Cabe, no máximo, comemorar as lutas do dia a dia, os acontecimentos enquanto acontecem. Mas é preciso, sobretudo, combater o niilismo oportunista, a condescendência existencial e a picaretagem intelectual da falta de esperança e de ação política.
Até agora, a sociedade do conhecimento segue regida pela lógica do mercado e os sinais de surgimento de uma sociedade pós-industrial ou pós-capitalista não bastam para aplacar as carências e angústias do presente. Muito ao contrário. Marilena Chauí, em palestra realizada em 2003 [CHAUÍ, 2003] observa que embora o conhecimento e a informação tenham se tornado forças produtivas, a hegemonia do capital financeiro em relação ao capital produtivo faz com que a informação prevaleça sobre o conhecimento. Como o capital financeiro opera com riquezas virtuais, cuja existência se reduz à informação, o poder econômico se baseia na posse de informações, que se tornam estratégicas e secretas, bloqueando poderes democráticos que também se baseiam no direito à informação. Assim, no presente, a chamada sociedade do conhecimento serve ao mercado, sobretudo o financeiro, e não propicia a ação política da sociedade civil.
Chauí destaca que a sociedade do conhecimento é inseparável da velocidade. Há uma acentuada redução do tempo entre a aquisição de conhecimento e sua aplicação tecnológica, a ponto da aplicação determinar o conteúdo da própria investigação científica. Ela cita que o conhecimento levou 1750 anos para se duplicar pela primeira vez, no início da era cristã; depois passou a duplicar-se a cada 150 anos, depois a cada 50 anos até contarmos agora este movimento em meses e dias. Mas questiona se a quantidade de descobertas está conseguindo transformar a estrutura das ciências, se a mudança epistemológica que ocorre hoje na química equivale, por exemplo, à passagem da alquimia para a química no século 17.
Na mesma palestra, ela remete à análise de David Harvey sobre a condição pós-moderna. Harvey associa os efeitos da acumulação flexível de capital – fragmentação da produção, hegemonia do capital financeiro, rotatividade extrema da mão-de-obra, obsolescência vertiginosa das qualificações do trabalho, exclusão social e política – a uma transformação sem precedentes na experiência do espaço e do tempo. Ele chama esta transformação de ‘compressão espaço-temporal’, isto é, a simultaneidade de dois fenômenos contrários engendrados pela globalização: de um lado, a fragmentação e dispersão espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos da tecnologia da informação, a compressão do espaço – tudo se passa aqui, sem distâncias, diferenças nem fronteiras – e a compressão do tempo – tudo se passa agora, sem passado e sem futuro. Mas o próprio autor adverte que “essas mudanças, quando confrontadas com as regras básicas de acumulação capitalista, mostram-se mais como transformações da aparência superficial do que como sinais do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova”. [HARVEY, 2003] Se, como sempre, tudo está por fazer, se tudo permanece incerto, a questão que prevalece também é a mesma de sempre: o que fazer? Que práxis pode se adequar ao momento em que o trabalho imaterial e o novo modo de produção se instalam mas não predominam, em que o novo sujeito está presente mas não é hegemônico? O que fazer enquanto a multidão não faz o evento? A resposta talvez esteja na construção também de um novo conceito de revolução. Não se trata mais de pensar a revolução como missão a ser cumprida e sim como devir revolucionário, constante, permanente, infindável. Na entrevista a Negri para a Futur Anterieur, em 1990, Deleuze dá o exemplo dos acontecimentos de Maio de 1968:
“Maio de 68 foi a manifestação, a irrupção de um devir em estado puro. Hoje está na moda denunciar os horrores da revolução. Nem mesmo é novidade, todo o romantismo inglês está repleto de uma reflexão sobre Cromwell muito análoga àquela que hoje se faz sobre Stálin. Dizem que as revoluções têm um mau futuro. Mas não param de misturar duas coisas, o futuro das revoluções na história e o devir revolucionário das pessoas. Nem sequer são as mesmas pessoas nos dois casos. A única oportunidade dos homens está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável”. [DELEUZE, 1992: 211]
Deleuze assinala que os processos de subjetivação só valem no momento em que têm uma espontaneidade rebelde. Não se trata de retorno ao ‘sujeito’, a uma instância dotada de deveres, poder e saber. Mais que de subjetivação, se poderia falar de novos tipos de acontecimentos, que não se explicam pelos estados de coisas que os suscitam ou nos quais tornam a cair. É o instante em que se elevam que se precisa agarrar. Deleuze conclui afirmando que acreditar no mundo é o que mais nos falta; é provocar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou de volume reduzidos. “É no nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo”. [DELEUZE, 1992: 218]
O que fazer de ‘o que fazer?, hoje – ou seja: o corpo do General Intellect, é um dos capítulos finais das Cinco lições. Nele, Negri discute o tema da ‘tomada do poder’ no marxismo revolucionário, à luz do legado teórico-político de Lênin, cuja obra teria sido alcançada só pela metade: conquistou o poder, mas não extinguiu o Estado. Negri pergunta o que seria a conquista do poder e a extinção do Estado num período histórico que vê (ou prevê) a hegemonia do capital no ‘general intellect’. Ou, dito de outra forma, como será possível construir o corpo subversivo do intelecto geral, fazendo da organização comunista a alavanca, o ponto de geração de novas corporalidades revolucionárias, a base da produção de subjetividade?
“Não acredito que possamos identificar a escolha do caminho possível: penso que somente um movimento de luta poderá decidi-lo. E, todavia, é certo que na perspectiva de amadurecimento do ‘General Intellect’ precisamos antecipar a experimentação. Porque somente dessa forma, opondo à história natural do capital aquelas contradições insolúveis que Marx inventou, a genealogia do ‘General Intellect’ será constituída como força subversiva. Definir o corpo do ‘General Intellect’ é, de fato, a mesma coisa que afirmar a potência dos sujeitos que o habitam, a violência da crise que sacode a sua ambigüidade, o choque de teleologias que o atravessam: e decidir de que lado estamos neste caos. (...) É uma constituição que nasce da militância de homens construídos no trabalho imaterial e cooperativo, decididos a viver como associação subversiva”. [NEGRI, 2003: 216] Mas, para Negri, não se trata somente de reconhecer uma nova realidade, mas de redescobrir a urgência da organização. O corpo está sempre localizado e é sempre no tempo. A produção de subjetividade necessita de determinações espaciais e temporais para ser eficaz. Para a Rússia (lugar e tempo), haverá para Lênin uma determinação absoluta: aqui, agora ou nunca mais. Quais são o espaço e o tempo possíveis da revolução para o proletariado imaterial hoje?
“Surgem muitas dificuldades ao reconhecer a dimensão espacial de um novo projeto leninista. Nós vivemos no Império e sabemos que qualquer iniciativa revolucionária que se movimente em espaços limitados (mesmo que fossem Estados-nação de grandes dimensões) não poderia ter continuidade. É claro, pois, que o único Palácio de Inverno hoje reconhecível é a White House! Difícil de ser atacada, não resta dúvida... Além disso, quanto mais o poder imperial toma força, tanto mais sua representação política torna-se complexa e integrada a nível mundial. (...) O que interessa em ‘Lênin além de Lênin’ é identificar praticamente aquele ponto da corrente imperial onde seja possível forçar a realidade. Ora, esse não é um ‘ponto fraco’ – não será mais assim: será, pelo contrário, aquele ponto onde são mais fortes a resistência, a insurreição, a hegemonia do ‘General Intellect’, em suma, o poder constituinte do novo proletariado”. [NEGRI, 2003: 217]
Negri chama de ‘kairòs’ (do grego ‘oportunidade’) a possibilidade de emergência do corpo do ‘general intellect’. Trata-se do instante de criação, da potência intempestiva de um evento, da flecha que o ‘general intellect’ desfere para reconhecer-se como corpo. Mas ele próprio pergunta o que isso significa. Diz que é preciso militância e experimentação a respeito deste ponto. Parece claro que o dispositivo leninista de intervenção num ponto fraco e num tempo crítico já não é eficaz. Somente onde o ‘partido da força de trabalho imaterial’ tem mais energia que as forças da exploração capitalista é possível um desenho de libertação. Negri retoma, aqui, a idéia de ‘democracia absoluta’, em Espinosa, aquela forma de governo que a multidão exerce sobre si mesma. Ela nada tem em comum com a teoria das formas de governo. ‘Democracia absoluta’ é um termo adequado à invenção de uma nova forma de liberdade, à produção de um povo em devir.
No aqui e agora, Negri preconiza que resistir é alargar as redes do saber e do agir ‘comuns’, contra a privatização do comando e da riqueza; significa romper as linhas da exploração e da exclusão.
É nesse plano, então, que cabe situar a demanda pelo ‘salário social’ e a discussão a respeito do seu financiamento e, portanto, da sua materialização. Trata-se de propor, debater, lutar e conquistar, mesmo que a demanda pareça impossível como deve ter ocorrido a quase todos que ouviram o senador Suplicy defender o seu projeto original há 14 anos e os que dizem hoje que não há recursos para cumprir a lei da renda mínima garantida, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República. E mesmo que a proposta seja ridicularizada, como o projeto do deputado Rebelo de taxar os lucros da venda de produtos geneticamente modificados. Uma frase atribuída ao Che parece bem adequada a esta situação: “Seja realista; exija o impossível!”.
Como vimos no capítulo ‘Pagar a conta’, é muito esclarecedor a respeito da viabilidade e do financiamento do salário social universal e incondicional o ensaio de Carlo Vercellone, Mutations du concept de travail productif et nouvelles normes de répartition. Fica demonstrado que a proposta é absolutamente legítima e ética não apenas sob a ótica social, mas também pela lógica econômica. Fica evidente, igualmente, a falácia da tese da limitação de recursos para a sua viabilização.
Pode-se perceber, assim, que da mesma forma que a causa da fome de milhões de pessoas não é a falta de alimentos (produzidos em abundância há muitas décadas) nem corresponde a qualquer lógica moral, a inexistência do salário social não decorre da escassez de dinheiro nem tampouco de qualquer imperativo ético. As duas questões são entrelaçadas e estão no plano das escolhas ao alcance da sociedade. O que é preciso é enfrentá-las e materializar as soluções.
Como estamos em um campo da especulação muito dinâmico, também cabe confrontar alguns acontecimentos do presente mais atual com as reflexões de Harvey e da professora Chauí sobre o estado da sociedade do conhecimento e o fato de que está submetida à lógica do mercado, bem como às dúvidas sobre os sinais de surgimento de uma nova ordem social, de produção e de vida. É possível que estes acontecimentos recentes prenunciem um novo ambiente para o debate e a tomada de decisões na sociedade global e ajudem a realizar o que pode parecer impossível: a socialização da riqueza correspondente à socialização do trabalho e da produção.
Desde Seattle, os fenômenos de resistência se multiplicam e não param de oferecer novidades e surpreender. A ‘nova sociedade civil’ se constitui globalmente e depressa, dispondo cada vez mais de meios tecnológicos para existir independentemente das instituições políticas e da mídia. Internet e telefones celulares permitem manifestações e acontecimentos locais e globais, de forma instantânea, autônoma e independente de comando. O exemplo mais recente de impacto mundial, ao qual já nos referimos, foi o uso maciço de mensagens via email e celulares nos últimos dias da campanha eleitoral na Espanha, após os atentados terroristas, em março deste ano. A mobilização instantânea e espontânea (aqui caberia também a palavra ‘intempestiva’) de milhões de pessoas inverteu (virou o jogo) em poucos dias a tendência do eleitorado, levando à derrota do primeiro-ministro José Maria Aznar, aliado da política militar-intervencionista de Bush. As conseqüências deste episódio repercutiram no enfraquecimento das forças de apoio mundial à intervenção americana no Iraque.
Estas manifestações parecem configurar uma resposta da multidão – com as armas da tecnologia – ao regime de controle contínuo, aberto e de comunicação instantânea, que passa a substituir no mundo atual – com as mesmas armas da tecnologia – as técnicas de confinamento da sociedade disciplinar.
É claro que o sistema capitalista – ou Império – se mobiliza para evitar ou absorver qualquer movimento de ocupação do ‘vazio da representação’ e de construção de espaços públicos livres para organização, diálogo e tomada de decisões. O sistema dominante atua para ‘estatizar’ as ongs e constitucionalizar a ‘nova sociedade civil’, enquanto constrói o campo teórico da limitação e neutralização dos movimentos intempestivos de base tecnológica. [15] Busca, com o mesmo propósito, absorver no mercado a potência das ‘fhash mobs’ (multidões repentinas) ou ‘smart mobs’ (multidões inteligentes), formadas por pessoas que se comunicam por telefone e pela internet e se encontram subitamente em determinado lugar para realizar um ato aparentemente inócuo. [16] Este fenômeno e as manifestações políticas da ‘nova sociedade civil’ têm em comum o fato de ocorrerem em grupos com interesses semelhantes, capazes de se comunicar e agir sem comando, graças às novas tecnologias de comunicação.
O capitalismo e o mercado nunca desistirão de dobrar a resistência e de tentar conciliar os contrários, apelando para a ideologia ou para as armas. Não resta à multidão outro destino, a não ser constituir e reconstituir sempre. Apostar no devir revolucionário é conquistar espaços ao poder e saber escapar de suas armadilhas. Revolução é uma fuga sem fim.
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